Saúde mental também ganha Medalhas de Ouro
Fiquei surpreendido com o Biles II, o salto de maior dificuldade na ginástica artística feminina. Um duplo mortal encarpado, que não há como negar o risco de morte. Tinha visto os saltos de todas as outras atletas. Magníficos. Foram na sua maioria verdadeiramente Olímpicos. Mas não há como Simone Biles, uma encantadora da ginástica, com movimentos tão suaves como uma inebriante dança.
Tenho um filho de 9 anos sensível à pressão que os atletas sofrem nos momentos decisivos. É o que me revela sempre em campeonatos quando vê alguém falhar. Este ano, ele começou na ginástica artística e sabe o que é sofrer quando se treina-e-treina-e-treina e nem tudo sai como desejamos. Por isso, eu estava a roer as unhas por estas atletas.
Simone Biles, de 27 anos, foi exemplar. O Biles II é tão difícil que a própria promete não repetir. É risco de morte. Mas ela não teve medo (aparentemente), foi tão tremendamente natural na sua execução. Tão corajosa.
Quando Biles recebeu a Medalha de Ouro, pensei: não vou simplificar a minha perceção sobre a doença mental. Mas também não vou deixar de pensar que a força do ser humano é tão tremendamente gigante que ultrapassa os piores momentos da vida, com muita resiliência. Ela chegou a dizer-se feliz por “inspirar a coragem” e não tenho dúvidas de que o fez e continuará a fazê-lo em muitos outros momentos da sua vida. O poder do desporto é este, o grande valor dos Jogos Olímpicos é este, o de mostrar a superação humana.
A pausa de dois anos de Biles teve muita sabedoria. Mesmo estando no pico de forma desportiva, a vida dela fora dos grandes palcos era muito mais importante. E foi o que fez, cuidar de si para, depois, regressar em grande forma. O Biles II é uma prova de coragem depois de tanto tempo parada, mas Simone Biles sabia uma coisa que, aparentemente, mais ninguém sabia: o ver- dadeiro risco na vida dela teria sido o que ocorreria se não tivesse parado a tempo.
O que vemos é uma Campeã Olímpica que continua a terapia pela sua saúde mental. Não há mal nenhum nisso, a saúde mental também ganha Medalhas de Ouro. E há muita gente por este mundo fora que carrega ao peito estas medalhas, ilustres anónimos que estão entre os nossos amigos, colegas de trabalho, familiares, vizinhos, ou os nossos ídolos.
Não há dúvidas de que o desporto, em qualquer que seja a sua prática, coloca mesmo à nossa frente uma evidência humana: a de que temos uma capacidade de luta incomensurável, a de que não desistimos, nem quando olhamos para o lado e alguém ou alguma coisa nos ameaça suplantar, a de que temos coragem para enfrentar perigos, o risco de vida.
Simone Biles não é a melhor ginasta artística de todos os tempos. Não é só isso, pelo menos. É humana, é alguém que antes de entrar nestes Olímpicos ganhou a medalha da saúde mental. Mas não se pense que termina aqui a sua luta, todos os dias são dias de luta.
Diretor interino do Diário de Notícias