Saudades do Brasil em Portugal
"O brasileiro é o português à solta"
(Agostinho da Silva)
A viagem para mim mais difícil de contar é a do Brasil. Não só porque ela durou cinco anos, não só pela felicidade que a sua história irradia na minha memória - mas sobretudo porque nenhum outro lugar do mundo me transformou como o Brasil.
Ali onde alguns portugueses esperam em vão encontrar um espelho, mais ou menos desfocado, de si próprios, ali no Brasil eu entendi que era a minha própria identidade que estava a ser mudada pela diferente realidade, tão aparentemente próxima, que me rodeava.
Tornei-me mais capaz de exteriorizar emoções, ganhei coragem para assumir o meu rosto na multidão e tudo o que ali me parecia tão próximo e familiar vinha mostrar a sua diferença num sorriso, a sua estranheza num
abraço, de tal forma que quanto mais o Brasil se me revelava esquivo e diverso, mais presente se fazia aquela dimensão brasileira do "homem cordial", de que falava Sérgio Buarque de Hollanda. A verdadeira amizade faz-se no reconhecimento e assunção das diferenças, mais que no culto narcisista das semelhanças.
A ilusão portuguesa de encarar o Brasil como a nossa própria projeção no tempo e no espaço assenta, como todos os mitos, em alguns factos verdadeiros, mas esquece ou omite tudo quanto se veio acrescentar naquela enorme nação às matrizes portuguesas da antiga colónia: a persistência das culturas indígenas, a força da realidade humana, social e cultural dos africanos, os fluxos migratórios vindos de muitas partes do mundo, da Itália ao Japão.
Há uma força centrípeta do Brasil que compele a transformar em brasileiro tudo o que mexe na complexa demografia do país. E é essa força poderosa de integração (embora, no caso dos africanos, esteja ainda longe da verdadeira inclusão), esse movimento para tornar deles tudo o que veio aportar às suas costas, que
explica a relativa invisibilidade para os brasileiros dessas matrizes portuguesas em que nós insistimos e que lá no Brasil são vistas como aquilo mesmo em que se tornaram: bases e fundamentos da própria cultura brasileira. Como na canção de Noel Rosa, tudo o que nós deixámos "já passou de português". Porque ali o destino natural do português é tornar-se brasileiro.
Há uma felicidade especial em descobrir o estranho no semelhante, a diferença na ilusão da identidade. Foi essa felicidade que eu tive o privilégio de viver, graças aos meus amigos brasileiros e aos meus amigos da grande comunidade portuguesa no Brasil. Para além da felicidade, foi uma grande e duradoura lição.
As amizades que fiz no Rio de Janeiro (em comum com minha Mulher) ensinaram-me o melhor que um português pode encontrar no Brasil e os meus amigos de lá abriram-me, não só as portas das suas casas, mas as próprias janelas interiores das suas ideias, sentimentos e modos de ver o mundo.
Ocorrem-me estes pensamentos durante a primeira sessão de um fascinante curso sobre a história da música brasileira, que Rui Vieira Nery está a ministrar no Grémio Literário. É impressionante ver como, ainda durante o tempo colonial e claramente no Primeiro Império, as contribuições musicais europeias se vieram interligar e misturar com as vozes negras e indígenas da terra e assumiram aquele sentido de humor divertido e irreverente, que ficou a durar na aura e na alma dos brasileiros.
E deixaram em mim para sempre aquelas "saudades do Brasil em Portugal", que Amália e Vinícius tão bem souberam cantar.
Diplomata e escritor