São os nossos direitos que estão em risco

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Sabe em que país quem procura asilo está sob a ameaça de acabar num avião com destino ao Ruanda? Onde é que estão proibidas manifestações de apoio ao massacre de civis num território invadido? E onde é que todas as noites há, segundo a Unicef, cerca de três mil crianças a dormir nas ruas? Nenhuma das respostas passa por um país longínquo governado por um tirano excêntrico e cruel. Tudo isto se passa no coração da Europa, em democracias ditas liberais.

O Reino Unido tem passado as últimas semanas a discutir uma lei que prevê a deportação forçada para o Ruanda de todos os migrantes ilegais, mesmo os que não têm qualquer ligação àquele país africano. Nesse mesmo Reino Unido foram banidas as bandeiras palestinianas e em França, na Alemanha e nos Países Baixos foram impostas restrições às manifestações de apoio aos civis palestinianos que estão sob ataque em Gaza. Também em França, o país que acaba de aprovar uma lei para restringir o acesso a apoios sociais e Saúde Pública a imigrantes que estejam há menos de cinco anos em território francês, há pelo menos 3000 menores a dormir sem teto.

Não há como o negar: são os nossos direitos que estão em risco. As democracias estão a falhar.

Falham no respeito das liberdades e dos Direitos Humanos, falham na defesa dos mais fracos, falham na resposta às necessidades materiais da maioria das populações.

E, no entanto, é quase sempre de corrupção que se fala quando se discute o que agora parece ser consensual ver como uma “crise de regime”. Falamos pouco de direitos, como se eles não fossem o essencial de um sistema que assenta numa governação do povo para o povo.

Esta ideia de uma corrupção generalizada serve, aliás, para sustentar uma outra que se enquista no debate público há décadas: a de que estamos a atravessar uma crise que exige medidas drásticas. Foi assim quando, depois do 11 de Setembro, nos pediram para abdicar de direitos em nome da segurança. Foi assim quando, depois da crise financeira de 2008, nos explicaram que teríamos de aceitar a austeridade. A democracia está, desta forma, num permanente estado de exceção, como que suspensa, erodindo os seus próprios fundamentos.

É como se, a cada nova crise, recuássemos mais um pouco, sempre racionalmente convencidos da bondade de perder direitos, resignados, porque não há alternativa. E cada passo atrás tem sido um recuo sem retorno.

Chegados aqui, não falta quem nos queira convencer de que é a própria democracia que não nos serve. Ou quem a use só como uma palavra oca, já desprovida de qualquer sentido que não o de um mero ritual institucional.

A democracia é escolha, é alternativa, é tensão. A democracia é o regime que impede a ditadura de uma maioria contra os mais fracos. A democracia é imperfeita, é precária e está permanentemente em construção. A democracia é o regime que inventámos para preservar liberdades individuais, mas também para encontrar equilíbrios coletivos.

Não podemos deixar que a democracia seja o espaço em que se perseguem os mais fracos, se oprime a expressão, se recusam os apoios materiais mais básicos, se desiste do combate à desigualdade.

Democracias governadas por uma elite de privilegiados contra uma multidão de gente cada vez mais pobre e desprovida de direitos são cada vez menos democráticas. Não podemos continuar a assistir a isto de olhos fechados e braços caídos. A ameaça vem de dentro.


Jornalista

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