Sabemos o que sabemos, não sabemos o que não sabemos
Em 2020, entre 10 e 20 de junho, três meses após a deteção em Portugal do primeiro caso de covid-19, do encerramento sequencial de escolas, imposição de teletrabalho, forte limitação da atividade económica e dos contactos sociais, mas sem qualquer vacinação contra a covid-19, estávamos com estes números: dois óbitos em média por dia devidos a covid; e, neste mesmo período, uma média diária de 324 novos casos diagnosticados.
A realidade, passado um ano, mas já com quase um terço da população vacinada, é hoje, para o mesmo período, de 10 a 20 de junho de 2021: dois óbitos em média por dia devidos a covid; e uma média de 393 novos casos diagnosticados a cada dia... Ou seja, quase mais 20% de casos diários do que no ano passado. E a mesma mortalidade... São estes os nossos dados oficiais.
Curiosamente, como nos lembramos, há poucas semanas, no mesmo dia em que Portugal abria sem restrições as suas fronteiras aos britânicos, a Alemanha fazia exatamente o oposto, por crer que a dita variante Delta da doença seria mais contagiosa e menos afetada pela vacinação. Angela Merkel, aliás, não deixou de o assinalar de forma audível... Não quero ser um novo especialista instantâneo em covid nem sequer tenho qualificações ou competências específicas para tirar todas as consequências destes e de outros dados. Mas, sendo o meio de junho um tempo do ano especial entre nós (um feriado nacional; feriados municipais em diversos concelhos, desde logo Lisboa; bom tempo e o início habitual do "espírito" de férias e de festas; início da época de turismo mais massificado, etc.), parece-me um bom termo de comparação, mesmo sendo um período (11 dias) limitado.
E muito mudou neste ano, objetivamente. Vejamos o que em teoria nos poderia desde logo proteger adicionalmente: vacinas - agora disponíveis e a ser administradas em larga escala; máscaras - antes execradas em Portugal e, depois, miraculosamente, legalmente exigidas; milhares de óbitos infelizes adicionais neste último ano e a maioria entre os mais fragilizados e, portanto, mais suscetíveis ao contágio e a esse fim; e muito mais casos de recuperados de covid em Portugal, e pelo mundo, potencialmente assim mais imunes (ou não...) a reinfeções.
No entanto, temos novas variantes do vírus, que parecem conseguir fintar a imunidade, seja a natural seja a criada pela vacinação. Um grande cansaço adicional em todos nós por esta espécie de suspensão da normalidade e da sociabilidade, imprevisível na sua duração e nos seus contornos e exigências. E um acumular perigoso das doenças e do adiar de diagnósticos e de tratamentos de tudo o resto que não é covid... Até agora, infelizmente, aquilo que verdadeiramente resultou, quanto a números públicos, foi o confinamento obrigatório.
A conclusão mais óbvia parece ser, portanto, pelo menos para mim, que há uma probabilidade infeliz de entre outubro de 2021 e fevereiro de 2022 podermos vir a passar pelo mesmo triste cenário que nos reservou o passado outono-inverno... E que a vacinação não está a ser tão decisiva quanto se esperava para abrandar significativamente a mortalidade ou sequer os contágios diagnosticados e contabilizados (e, portanto, em regra, sintomáticos). Imagino, portanto, que, para os decisores políticos, neste momento, exista um enorme ponto de interrogação nas suas cabeças. "O que fazer", como já perguntava, na capa, Lenine? Porque algo terá de ser feito entre julho e setembro, sob pena de regressarmos a números que não queremos.
No entanto, os Estados Unidos e o Brasil já ensinaram ao mundo que se pode viver, social e politicamente, com números de mortes por covid impensáveis em tempo de paz, para países no contexto ocidental e democráticos. Será esse o nosso futuro, nacional e europeu? A banalização, o reenquadramento e a menorização desta peste, a favor da normalização económica e social? Tudo indica que sim. Mesmo que os números de junho de 2022 sejam semelhantes ou piores, a nossa reação provavelmente já será outra. Um encolher de ombros? Será simplesmente um conformado "ar que se lhe deu", como na nossa expressão histórica sobre a poliomielite? Deste nosso tempo estranho, de escândalo inicial e sucessivo apaziguamento silencioso perante a doença e a morte, só temos hoje uma certeza: sobreviveremos, mas não seremos melhores depois.
Professor da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa