Sabedoria e tempo, esses amantes zangados

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Temos sempre razão: podemos é levar um século a tê-la. E provavelmente será por outras palavras, até opostas às primeiras verdades. É já para todos um facto, creio, que os próximos anos serão diferentes. Não viverão esses anos, no nosso espaço público mais posto em comum, em torno de PS ou PSD, de mais ou menos despesa ou receita pública, de taxas de IVA ou de outros impostos nem sequer das dificuldades de saúde pública, educação, acesso a prestações públicas, pelas quais sabemos que pagamos bastante, ou salários curtos e que põem todos os que podem fora do retângulo logo que obtenham alforria de diploma ou de necessidade maior.

Agora que temos inequivocamente lideranças banais, esse augúrio de normalidade dos regimes, teremos de ver o que elas valem perante o seu tempo. Gente banal faz coisas extraordinárias, atenção. É aliás um dos requisitos para a ultrapassagem da banalidade com que se nasce universalmente um qualquer dia, igual aos outros. Mas nem toda a gente banal faz coisas extraordinárias nem sequer uma curta minoria. E há gente banal que adquiriu poderes inauditos. Como sempre sucedeu na história, aliás. Mas a história, mesmo a mais violenta, é sempre extraordinariamente pacífica para quem está já fora dela.

O país mais poderoso do nosso tempo tem uma liderança que seria todo um programa de humor há poucos anos. O Médio Oriente está como sabemos - ou seja, não sabemos e tudo parece casuístico, já não há emprego público para os estrategas tradicionais, lentos, preparados, mesmo quando errados. O czarismo russo voltou e vai ficar. A Europa está aprisionada nas suas cinzas e demónios, entre a imigração e a xenofobia, entre as limitações energéticas e as contas sociais para pagar, entre a fatura da sua defesa e a tentação de se reinventar como terra do novo e do bom, entre a sua demografia envelhecida e o arrepio de qualquer regressão de direitos.

Na verdade, todos os projetos de paz perpétua das últimas décadas estão a falhar. As Nações Unidas não existem a não ser como corpo anafado de funcionários, a quem os países não querem especialmente. A NATO é uma mera caixa de ressonância de ditames percentuais, com a dúvida terrível da capacidade de assunção do compromisso decisivo, quando e se o tempo chegar. A União Europeia vive a natural agonia do seu crescimento e dos seus vínculos e memórias de sempre.

Trump vir dizer que agora “é o tempo da paz” é de uma ironia superior. Só que nem sequer o é. É só o tweet do dia. Transacional, como costuma ser, mas transacional de empreiteiro - ou “da Temu”, como também agora se começou a dizer, enquanto se alimenta a grande máquina de vendas e de dependência comercial, a mais decisiva. A China ainda vai vencer isto tudo, simplesmente vendendo bom senso histórico e massajadores eletrónicos do nervo vago, nada que não estivesse previsto e estudado.

O que fazem as pessoas em tempos de guerra ou perante a sua ameaça? Suicidam-se menos, é sabido. Gastam menos. Decidem menos. Focam-se no essencial, que normalmente é comida e pouco mais. Aumentam os níveis de stress coletivo e individual. Aumentam os fluxos migratórios, isto é, palavras bonitas para dizer que as pessoas fogem - e não vão necessariamente de férias surfar para a Nazaré. Aumentam os mercados negros, todos eles. Também podem surgir, diz a literatura no tema, redes de entreajuda e de solidariedade, mas não pelas melhores razões. E tipicamente alguns dos mais ricos ficam mais ricos e quase todos dos mais pobres ficam ainda mais pobres. Há aqui algo de bom para Portugal?

Professor da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa

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