RTP. Um serviço público ao serviço do público

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“Não devíamos procurar heróis, deveríamos andar á procura de boas ideias”, Noam Chomsky, ativista político e linguista

Pagar 3,02€ por mês para o serviço público de televisão é caro ou barato? Exceto a administração da RTP, todos consideram caro. Se não viesse camuflada de forma obrigatória na fatura da eletricidade, ninguém pagaria de livre vontade a Contribuição para o Audiovisual. O serviço público de televisão existe porque sim. Existiu para servir a propaganda do Estado Novo. Depois a propaganda dos partidos do poder. E agora fez um esforço para se depurar das más influências, mas a desinfeção foi tão forte que se tornou num meio de comunicação insípido e burocrático. Com medo de desagradar setores influentes, o conglomerado RTP joga à defesa, cumpre os mínimos, mas raramente bate os máximos. Refugia-se no futebol inconsequente, na música para o contentamento, e em formatos testados à exaustão. Estamos a pagar um serviço público de rádio e televisão que tem uma enorme dificuldade em justificar a sua existência. 

Gerir a RTP não é fácil. O contrato de concessão é um documento jurídico que serve para listar um conjunto de boas intenções, que na prática se tornam em banalidades que pouco ajudam a fazer uma programação de serviço público que se distinga. As regras da gestão pública e a supervisão política tornam o espaço de manobra muito reduzido. Mas o maior problema de todos é que não há pensamento académico nem projeto empresarial que acenda uma luz ao fundo do túnel. Nestas situações, o procedimento normal do país é copiar no estrangeiro. Mas não dá para copiar a BBC. 

Este serviço público é caro, não porque custa muito dinheiro, mas porque não serve ao país. O poder não sabe o que fazer, e deixa andar. É uma pena. É um esbanjar de vilanagem, um puro desperdício de recursos, porque poderia ser a principal arma do desenvolvimento nacional. A RTP pode deixar de ser um fardo económico e político, para se transformar numa bandeira de esperança de um país melhor. 

Como tenho escrito aqui nesta coluna, para termos uma economia melhor, precisamos de uma sociedade melhor. E não podemos mandar todo o país para a escola. Não cabemos lá, nem esta escola saberia o que fazer connosco. Se quiserem, os Media são a escola depois da escola. Não é para ter aulas como na telescola, nem para evangelizar o povo com ópera, é para aprender a aprender. 

O que fazer?

É possível retirar a RTP da periferia e colocá-la no centro do desenvolvimento económico e social, com a missão de promover o conhecimento e a sabedoria. O país deve ter a inteligência suficiente para perceber que tem à sua disposição um poderoso meio de comunicação de massas, com os seus formatos de programação popular, para chegar às pessoas e transmitir – à medida de cada público-alvo - informação transformadora e educação. Nomeadamente através do entretenimento e da ficção. 

Não se trata de revolucionar a grelha, trata-se de trabalhar com produtores, realizadores e argumentistas para se criarem espaços de aprendizagem dentro dos conteúdos populares. Não é propaganda política, é psicologia e sociologia. 

Mas quando se fala de conhecimento, convém desmitificar alguns erros habituais. Por exemplo, quem não sabe quem escreveu As Pupilas do Senhor Reitor é tido como um ignorante. Numa sociedade com a informação na ponta dos dedos, memorizar interessa pouco. Hoje o desafio é saber o que fazer com tanta informação. Por isso o mais importante é compreender a pequenez da sociedade portuguesa rural do século XIX, em que se move o texto de Júlio Dinis. Nesta linha, a RTP 1 exibe há vários anos no horário nobre concursos de pergunta e resposta (Joker e outros), que reforçam esta ideia da cultura da memorização. Melhor serviço é dar espaço, por exemplo, aos talent shows que pedem gestão de projeto e capacidade de resolver problemas (mas que importa ser mais pedagógico sobre os processos), como o Cosido à Mão. Para que fique claro: o que importa não é tanto aprender a tricotar, é aprender a lidar com os prazos, os objetivos, os colegas, os concorrentes, as dificuldades, etc. Em suma: com o stresse e connosco próprios. 

Esta mania de parecer culto atravessa também a RTP 2. Este canal é uma arrecadação televisiva, onde se arruma tudo o que não cabe na mobília principal (RTP 1). Tenta ir-se a todos e, como mostram as sondagens, chega-se a muito poucos. Colocar a arte num ghetto para especialistas, só para dizer que a RTP faz programação cultural, é um erro. Não há dimensão de mercado para um “canal artístico” em Portugal, pelo que a solução mais acertada – porque a mais pedagógica – é colocar o sentido da arte em todo o lado. E assim, talvez um dia, haja mercado para a arte no audiovisual. A RTP precisa de uma “banksyficação”, transformando todos os becos e sarjetas em arte do conhecimento (e que não seja apenas design gráfico).

Para uma verdadeira cultura do conhecimento, por exemplo, o serviço público de televisão deveria ter criado os Ted Talk: democratizar a comunicação do conhecimento (para quem sabe e para quem quer saber). Já estão inventados, então podemos baixar os braços? Não. Há tanto para fazer. A RTP poderia pensar em si não como um canal de televisão, mas como um centro de promoção do conhecimento. Em articulação com universidades e instituições, pode estar ligada às centenas de festivais e programas de debates, entrevistas, podcasts, que acontecem no país. Ao escolher os melhores para os exibir estaria a trazer mais conhecimento para a programação, iria dar uma enorme ajuda à afirmação destes eventos locais e teria conteúdos gratuitos para passar à hora mais conveniente.

Mas o mais importante é tentar travar a grande lacuna nacional, que tem impacto terrível em tudo o que fazemos (principalmente na economia): a inteligência emocional e relacional. Precisamos de mais capacidade de ler e compreender o outro (fornecedores, clientes, mercados, colaboradores, concorrentes, etc), para nos compreendermos melhor a nós próprios (a nossa marca, o nosso mercado, etc). Pode ser feito com programas específicos, mas ficamos mais bem servidos com uma presença permanente em antena. Por exemplo: dá-se tanta atenção ao agendamento político no Parlamento, mas há pouca aprendizagem sobre a atitude e o comportamento dos parlamentares em público e em privado. 

A inteligência emocional é um mundo, mas vale a pena destacar duas competências que mais ajudam na transformação pessoal: a comunicação assertiva (saber ouvir, respeitar o outro, argumentar com factos, aceitar que pessoas diferentes podem ter pensamentos diferentes); e a criatividade (abertura de espírito, coragem para enfrentar a norma, imaginação, capacidade de teste, etc) orientada para os resultados (Qual é o problema? Quais são as ideias para a solução?). 

Mais uma vez: não é para dar aulas, é para as pessoas observarem e aprenderem com as boas práticas. A ficção é um excelente meio para aprender com a natureza humana: num determinado contexto podemos aprender – pela positiva ou pela negativa – como devemos analisar e reagir. Mas para haver aprendizagem é preciso criar cinco minutos de pensamento crítico, no final ou no intervalo, de cada filme. 

E isto leva-nos aos canais: oito de televisão e sete de rádio. Uau, que belo ramalhete. Tanta quantidade, mas qual qualidade. O que realmente faz cada um? 

Cada canal deveria ser orientado para um público-alvo: a RTP 1 como o canal popular, para uma população adulta; a RTP 2 como o canal jovem; e a RTP 3 como um canal do conhecimento (não de notícias, mas com algumas notícias) para o público com formação mais elevada, com bastante destaque para a gestão (não é economia, é compreender as diferentes dimensões do mundo dos negócios). Este seria o canal o mais importante: se influenciarmos quem decide, criamos uma rede de conhecimento que rapidamente alastra a todo o país. Pode haver mais, cavando mais nichos, mas se fizermos estes três bem feitos, já será bastante bom.

Informação

A informação da RTP precisa desesperadamente de criatividade e paixão: está burocrática, defensiva, pouco entusiasmante para quem produz e para quem assiste. Precisamos de líderes fortes na redação que tenham a coragem de destruir o processo da agenda institucional (e lobista), para deixar cair o mais-do-mesmo, e levantar critérios de seleção das notícias orientados para o enriquecimento pessoal de cada público-alvo. 

Entre outros, há dois novos critérios transformadores que justificam esta mudança: o futuro e a resolução de problemas. O futuro não se adivinha, projeta-se com base nas boas informações do passado e do presente. No fundo, os futuristas são bons historiadores. Pode ser a previsão meteorológica, as propostas dos partidos políticos, as tendências sociais ou os avanços na ciência e tecnologia. O lema para uma nova televisão deve ser: Como vai ser o dia de amanhã?

O foco no futuro, faz com que se valorize aquilo que é realmente importante no presente. O que é transformador? E isso leva-nos à essência e ao conteúdo e menos à forma e ao acessório. Provavelmente 75% das notícias atuais continuam a ser publicadas, mas com outra orientação. Por outro lado, em vez dos jornalistas estarem sempre a perguntar: “Como se sente?” – que também é importante -, devem começar a perguntar: “O que aprendemos com tudo isto?” 

Esta estratégia tem um profundo impacto no setor audiovisual nacional. Não existem conteúdos de qualidade no mercado nacional ou internacional. Não se pode ir a Cannes, comprar mais 100 horas e está resolvido. É preciso produzir. 

É um problema? Claro que é. Mas é também a mais importante oportunidade para os depauperados produtores nacionais: Portugal pode ter produtos que mais ninguém tem e ganhar peso económico no mercado mundial dos conteúdos.

Vai ser mais caro? Vai começar por ser caro, porque vai exigir muito mais orçamento. Mas estamos a transformar despesas inconsequentes em investimento reprodutivo. Se tudo for bem feito, talvez seja o mais importante investimento jamais realizado em Portugal. Então será muito barato.

Os países querem ser ricos para melhorar a sociedade. Talvez seja mais sensato pensar que devemos começar por melhorar a sociedade para seremos ricos. Ou melhor ainda: que a verdadeira riqueza é uma sociedade independente e orgulhosa de si mesma. 

Estas são apenas algumas reflexões para um novo serviço público de televisão. Muito mais há para discutir, o que não cabe nos quatro cantos de um artigo de opinião. É um projeto para a RTP e para todos os órgãos de comunicação social privados – televisão, rádio, imprensa - que, voluntariamente, quisessem aderir. E assim talvez resolver o problema gigantesco das contas das empresas de comunicação social. É que não há jornalismo independente, sem independência financeira.

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