Requiem para a Palestina
Há muitos anos, vi uma entrevista de um escritor palestino, de cujo nome infelizmente me esqueci, à TV Globo, na qual ele dizia que o sonho dele era ver uma Palestina como já foi no passado: um país multiétnico, multicultural e multirreligioso. Os atuais acontecimentos na região comprovam, como se tal ainda fosse necessário, que tal sonho é, literalmente, simples licença poética.
Os factos estão claros. Como escreveu no passado dia 14 de maio o líder da bancada parlamentar do Bloco de Esquerda, Pedro Filipe Soares, em excelente artigo divulgado no jornal Público, "a faísca dos acontecimentos recentes foi a notícia de despejo de famílias palestinianas do bairro de Sheik Jarrah, em Jerusalém Oriental", ao abrigo da famigerada "Lei da Ausência".
Como se sabe, essa lei é apenas reservada aos judeus e permite-lhes reivindicar habitações ou terrenos com fundamento em alegados direitos de propriedade do século XIX. Ou seja, o diploma serve para despejar famílias palestinas e favorecer famílias judaicas ortodoxas.
Compreensivelmente, a notícia de mais um despejo dessa natureza provocou a reação dos palestinos. Eclodiu, assim, uma manifestação para reclamar justiça e opor-se a uma lei injusta, que as autoridades israelitas reprimiram violentamente. A situação descontrolou-se. O Hamas resolveu intervir. Era o que Telavive e os seus aliados em todo o mundo aguardavam.
A narrativa mediática global centrou-se, então, nas ações do Hamas, mais concretamente nos rockets disparados pela referida organização contra o território israelita. Isso passou a dominar as manchetes (artigos como o de Pedro Filipe Soares são uma "esmola" que a imprensa mainstream ocidental nos concede). Paralelamente, o presidente Joe Biden, dos Estados Unidos, disse que Israel tinha o direito de se defender do Hamas. A presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyden, condenou "os ataques do Hamas contra Israel".
Faço meu, pois, o contundente comentário do embaixador português Francisco Seixas da Costa, na sua conta do Twitter: "Um dos 'truques' mais desonestos na abordagem da questão israelo-palestina é olhar o conflito apenas sob a perspetiva das ações agressivas do Hamas, como se um juízo negativo sobre estas pudesse condenar a causa dos palestinos."
O que está em jogo na região é muito simples: o direito dos palestinos a terem o seu próprio estado, aspiração que fizeram sentir desde os anos 30 do século passado, depois de a coroa britânica ter encorajado a formação de uma "casa" para os judeus na Palestina. Apesar disso, os palestinos, juntamente com os curdos, são os únicos povos da referida parte do mundo que não se constituíram em estados nos anos 1940 e 50, quando todos os demais o fizeram. Pelo contrário, foram obrigados a espalhar-se pelos territórios de vários estados.
Após várias vicissitudes, apenas nos anos 1990 a comunidade internacional aceitou o princípio de constituição de um estado palestino. Sendo improvável que o sonho do escritor palestino que referi no início deste texto possa materializar-se e uma vez, igualmente, vencidas as resistências árabes ao princípio dos dois estados, este impôs-se como a solução aceite por todos para resolver o velho conflito israelo-palestino.
Melhor, quase todos. De facto, restam poucas dúvidas de que Israel quer inviabilizar qualquer estado palestino. Quem olhar o mapa desde 1946 até aos nossos dias comprovará, estarrecido, como a usurpação do território palestino obedece a uma estratégica incessante.
Assim, dificilmente haverá paz na região.
Jornalista e escritor angolano, publicado em Portugal pela Caminho