Repensar a democracia

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A morte de Bernard Manin (1951-2024), mestre indiscutível da Ciência Política moderna, com fecunda obra produzida na Europa e nos Estados Unidos e um reconhecimento geral, coincidem com a conjuntura complexa que atravessamos. E pode dizer-se que as suas lições são fundamentais para agora, devendo estar bem presentes para que não continuemos a viver uma perigosa letargia animada pela repetição de estranhos lugares-comuns.

Não podemos cruzar os braços perante a erosão da democracia. Por isso, o seu livro Principes du Gouvernement Représentatif (Calmain-Lévy, 1995) merece releitura atenta. Fala-nos das invenções institucionais experimentadas pelas três revoluções modernas - inglesa, norte-americana e francesa - e renovou significativamente a compreensão da democracia representativa, centrando-se no consentimento dos cidadãos, diferentemente da democracia ateniense até às repúblicas italianas da Renascença, em que o tirar à sorte correspondia ao método igualitário por excelência.

A prevalência da legitimidade do voto concede à decisão popular uma legitimidade aristocrática, a que se juntam os princípios do Governo representativo: eleição periódica dos governantes pelos governados, ausência de mandatos imperativos, liberdade da opinião pública e decisão pública depois de confronto e discussão de ideias. É a plasticidade destes princípios que permite a adaptação da democracia às transformações sociais.

As investigações de Bernard Manin decorrem de um método muito pertinente: estudar os discursos e as práticas do passado para fazerem luz sobre o presente.

Com a releitura dos pensadores clássicos e a análise das instituições políticas, encontramos as bases para a descoberta de caminhos que visam ultrapassar a atual crise da democracia. Dois são os modelos de limitação do poder de que parte: a limitação pela regra ou pela delimitação de esferas de competência; e a limitação pelo equilíbrio de poderes.

Estudioso profundo de Montesquieu e da sua atualidade, opôs no plano filosófico o liberalismo monista, na linha de Hayek, e um liberalismo pluralista, na linha de Isaiah Berlin. Assim, pôde ler o autor das Cartas Persas considerando os riscos atuais das autocracias e das novas tendências para a concentração de poderes, sob influência económica e tecnológica. Dir-se-ia que no horizonte se desenham sombras preocupantes de um novo despotismo oriental, sob vestes inesperadas, mas igualmente perturbadoras.

Aliás, a última obra, ainda inédita, que nos deixou sobre a Revolução Francesa e as origens do Terror, Un Voile sur la Liberté, deverá revelar importantes pistas de reflexão para o tempo atual. É impressionante a atualidade das reflexões que Bernard Manin nos deixou, designadamente quanto ao compromisso social-democrata e sobre a sua perenidade, com Alain Bergounioux - ligando a legitimidade da lei e do voto e a legitimidade do exercício e da Justiça e pondo a tónica na ideia de deliberação política.

Daí ainda a importância da análise dos dispositivos constitucionais de natureza excecional, comparando a ditadura romana, o estado de sítio, a suspensão do habeas corpus e a lei marcial, no contexto da abolição provisória da ordem constitucional.

De facto, a democracia como sistema de valores, centrados na dignidade humana e na salvaguarda da liberdade e dos direitos fundamentais, apenas pode afirmar-se plenamente se o primado da lei for servido pelo compromisso dos cidadãos e pela limitação do poder.

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