Renascer das cinzas
Quando as chamas tomaram conta da magnífica cobertura da Notre-Dame de Paris, em 2019, parecia que toda uma era ardia juntamente. Embora a basílica de Saint-Denis tenha sido a primeira a utilizar o gótico e a ser o panteão dos reis franceses, foi Notre-Dame que se tornou, quase, um símbolo da própria França. Foi lugar de coroação de Napoleão, beatificação de Joana d’Arc, inspiração de Victor Hugo para uma das suas maiores obras literárias - que acabou por contribuir para o seu restauro, simbólico da teoria da unidade de estilo de Viollet-le-Duc no século XIX.
A magnífica cobertura com as vigas de carvalho com mais de 800 anos desaparecia com aquele incêndio, de que, até hoje, se desconhece a causa. Sim, de facto, parecia que, com ela, toda uma França colapsava. Aquilo que a Revolução Francesa não conseguiu fazer - incluindo a decapitação de figuras do Antigo Testamento confundidas com os reis de França - o fogo iria cumprir.
Macron prometeu a reabertura em 5 anos, e o impossível aconteceu. No passado dia 8, Dia de Nossa Senhora, o seu templo mais significativo em território francês reabriu. A fonte de orgulho nacional e identidade ressurgiu das cinzas para mostrar a uma França profundamente dividida e politicamente fragmentada que, afinal, há esperança. O peso simbólico da reconstrução, limpeza e restauro da Notre-Dame poderá servir como a ignição simbólica de que o presidente gaulês necessita, depois da derrocada governamental de há poucos dias.
O trabalho hercúleo de restaurar a catedral, que reuniu mais de 2000 trabalhadores, não só ressuscitou o edifício como reabriu os olhos do mundo para os saberes e as técnicas medievais de construção. Hoje, dependentes que somos da mais avançada tecnologia, parece-nos impossível ter sido erguido algo tão maravilhoso há mais de 800 anos. Apesar de as várias propostas que brotaram para a sua recuperação terem balanceado entre o ridículo e o absurdo, a ideia de respeitar o seu lado sagrado, profundamente cristão e de santuário prevaleceu.
O custo para o restauro foi de cerca de 700 milhões de euros, maioritariamente recolhidos por doadores franceses, mas também com contributos de todo o mundo. Por reconhecerem que o seu símbolo já ultrapassa a França, já é um legado da cultura Ocidental. Mantém-se como a sede da Igreja Católica parisiense, mas é, toda ela, uma caleidoscópica metáfora de memória de luz, reverberação musical, solenidade, delicada grandeza, solidez tranquila e ancestral. Quem a restaurou sentiu que contribuía para algo glorioso, maior que todos nós.
Que lições poderemos tirar de tudo isto? Muitas. Mas talvez Notre-Dame e toda a sua história de perda e recuperação possa inspirar a França a regenerar-se. Das cinzas.