Regresso ao básico
Regressar ao passado não é, nem nunca foi, um caminho prometedor. A expressão é mesmo utilizada entre nós com um sentido pejorativo, pela simples razão de que o mundo, tal como as pessoas, foi feito para progredir, andar para a frente, e não o seu contrário. Algo bem diferente é avançar esquecendo o caminho já feito ou ignorando certezas consolidadas no passado, aquilo que frequentemente referimos como "o básico".
Um dos temas que me inquieta, quando vivemos no limbo do confina/desconfina, é o valor da proximidade humana e social. Ou melhor, quanto do nosso desenvolvimento e quanto do nosso bem-estar decorre da interação direta entre as pessoas. A evolução das espécies conduziu-nos a este formato estandardizado: comprimento entre o metro e meio e os dois metros, tração aos dois membros inferiores, braços robotizados a que chamamos membros superiores e uma palete de cores de pele e de cabelo, comprimentos de nariz e forma de lábios que nos embrulha de modo mais ou menos atrativo, dependendo dos gostos. Até aqui, nada que não tenhamos visto nos automóveis. No entanto, onde esmagamos a concorrência dos veículos, grandes, pequenos, a duas ou a muitas rodas, é no equipamento. Sem descurar a sofisticação - ou a falta dela - de tantos de nós, fomos dotados de cinco sistemas avançados que mandam nisto tudo - visão, audição, olfato, paladar e tato -, integrados e comandados pelo cérebro, um pedaço de matéria viva que cabe numa mão, mas que tem muitas vezes o maior dos poderes que possamos imaginar, acumulando inteligência e memória.
Duas pessoas, separadas pela distância de um braço, dotadas das cinco ferramentas que herdámos, gratuitamente e à nascença, são capazes de gerar uma infinidade de possibilidades de interação e criação. Se em vez de duas forem três, dez ou muitas, a mesma equação remete para um infinito de infinitos, que, sabe quem estudou matemática, é uma indeterminação, por ser tão grande. Esse potencial de dimensões desconhecidas é a força motriz da humanidade desde que, há uns bons dez mil anos, nasceram na Mesopotâmia as primeiras vilas neolíticas. Não mais a Humanidade abdicou do valor da proximidade, tecendo uma teia de relações pessoais e sociais que bate aos pontos qualquer outro ecossistema conhecido no planeta. Isto é, para mim, o básico.
Embora tenham existido outras, foi apenas nesta pandemia, a da covid-19, que existiu uma panóplia de instrumentos tecnológicos de utilidade que não ouso questionar. Desassossega-me uma ameaça que vou vislumbrando à medida que o vírus vai ajoelhando. Refiro-me à tentação de substituir o olho pela câmara, a boca pelo speaker e o ouvido pelo mic. Ou seja, trocar a pessoa à nossa frente por um laptop, um tablet ou um smatphone. Considerando que não dispõem ainda de olfato e tato, podemos falar de interlocutores proto-humanos. Adequados, direi, para as interações simples, estruturadas, protocoladas e conservadoras. Umas máquinas de manutenção do mundo, é apenas isso que podemos esperar do teletrabalho e do tele-ensino.
Subtrair, em grande escala, a interação cara-a-cara é reduzir o mundo ao mecânico, desprover a vida de sentimentos e estados de alma, o mesmo que aceitar a ausência da arte na sociedade.
Para continuar a criar e perscrutar o infinito das possibilidades que nascem de algo tão simples como um entrecruzar de olhares, um jeito no canto do lábio ou um impercetível murmúrio vocal de concordância ou discordância, prefiro estar à distância de um braço de um outro homo sapiens. O meu admirável mundo novo ainda é o das pessoas. Básico.
Deputado e professor catedrático