Refugiados que não interessam
Confrontados com a invasão da Ucrânia e imagens diárias de destruição e miséria, um após outro, vários Chefes de Estado apresentaram compromissos, mais ou menos corajosos, para acolher e apoiar quem foge da guerra. O povo ucraniano sabe que é bem-vindo e que pode contar com os seus vizinhos a ocidente. Ainda bem.
Por momentos, a frieza do passado recente foi esquecida - para os mais otimistas, talvez até ultrapassada. Governos de países como Hungria e Polónia, que se tinham recusado a auxiliar quem arriscava a vida para chegar à UE, apareciam agora de braços abertos.
O Reino Unido, que desde o governo de David Cameron manteve uma postura relativamente protecionista, acompanhou esta tendência e Boris Johnson parecia disponível para abrir o território britânico aos refugiados ucranianos. Parecia.
Ao contrário da União Europeia, que concordou rapidamente em garantir o direito de residência a ucranianos sem visto, o Reino Unido chegou a barrar-lhes a entrada quando atravessavam o Canal da Mancha. Dominic Raab, Vice-Primeiro-Ministro, foi mais longe: os britânicos deviam disponibilizar apoio apenas aos "verdadeiros refugiados".
Além de descartar qualquer responsabilidade ética, as palavras escolhidas fazem eco das narrativas populistas que apostam na divisão entre "refugiados bons" e refugiados que não interessam. Pior, o Partido Conservador não se ficou por aqui e passou das palavras aos atos.
Há dias, Boris Johnson tomou o púlpito para anunciar uma política tão bizarra quanto crua, ultrapassando os limites da decência. De acordo com a sua proposta, os requerentes de asilo que entrem no Reino Unido e não cumpram os procedimentos legais poderão ser enviados para o Ruanda, independentemente do seu local de origem. Aí aguardarão a análise do seu pedido de asilo e, caso seja deferido, serão autorizados a residir... no Ruanda.
Percebe-se que, confrontado com as extremas carências do seu país e a necessidade de obter ajuda financeira internacional, o governo ruandês aceite receber os requerentes de asilo do Reino Unido em troca de um cheque. É mais difícil compreender como é que o governo de Boris Johnson consegue achar que esta política respeita as suas obrigações internacionais. Ou as morais.
Acossado internamente pela participação em festas privadas que eram proibidas durante as piores fases da pandemia, Boris Johnson decidiu dar um passo em frente rumo ao abismo da decência humanitária.
Ocorre-me que a proposta política é tão absolutamente errada que a sua apresentação poderia corresponder à estratégia de Donald Trump de desviar as atenções das notícias negativas com o lançamento de uma polémica ainda mais chocante. Infelizmente, duvido que seja apenas isso.
O atual governo do Reino Unido quer mesmo pagar a outros para se desresponsabilizar das suas obrigações humanitárias. Aconteceu ser o Ruanda a oferecer o melhor preço. Pouco importa se as pessoas enviadas para lá terão poucas ou nenhumas hipóteses de ter uma vida decente. Ou se nesse país existe democracia ou respeito pelos direitos humanos. Foi uma questão de preço. E para alguns a vida dos outros tem muito pouco valor.
Eurodeputado
Marcou a arte e cultura nacional durante várias gerações, tornando-se um rosto familiar e amigo. Como se fosse da família de todos os portugueses. Partiu mas nunca desaparecerá. Palmas para Eunice Muñoz.