Recuperar a alegria
A visita a um bom amigo, que estava tão desanimado ou mais do que eu com as notícias da política, levou-me a pensar como se generalizou já entre nós a “melancolia de esquerda”, que Enzo Traverso teorizou. Nada mais justo hoje do que essa melancolia. Mas os meus amigos de direita estarão satisfeitos com a situação, no país e no mundo?
Talvez. Hoje perdeu-se a coerência rigorosa dos princípios e não vejo ninguém nos jornais a defender Donald Trump, com excepção de Jaime Nogueira Pinto, alguém que eu estimo e considero pessoalmente. E, quanto ao resto, duas negativas fazem uma afirmativa, como nos ensinaram os lógicos.
Numa situação de caso perdido, imaginada num poema de Manuel Bandeira, o médico responde ao doente desesperado que lhe pergunta o que fazer: A única coisa a fazer é tocar um tango argentino. Não estou a propor (longe de mim!) soluções à Milei. Já sabemos de experiência quem paga os belos números macroeconómicos por que o mundo e os bancos esperam.
O tango argentino não é uma fuga pela frivolidade irresponsável a uma situação insuportável, é a saída por fora da caixa para um estado de maior felicidade. Alguém viu a melancolia construir alguma coisa, para além de bons poemas? As paixões tristes, ensinou-nos Espinoza, tornam-nos passivos e inativos. Só a alegria constrói. E quanto mais difícil for a alegria, num mundo em que há guerras monstruosas e mentiras sem vergonha, mais ela valerá para nós sermos capazes de criar alternativas ao presente estado de coisas.
Bem sei que os tangos argentinos são muitas vezes de uma tristeza macabra. Em Noche de Reyes, por exemplo, um pai explica aos filhos por que teve de matar, justamente nessa noite, a mãe deles e su amigo más fiel (dele), que encontrara muito animados no seu (dele) leito conjugal. Mas nós sabemos, desde Aristóteles, a função catártica da arte, e certamente qualquer marido traído, ouvida esta lição, não irá escolher a noite de Reis, quando as crianças esperam os presentes natalícios, para assassinar a mulher e o ou os amantes respetivos. Escolherá uma data mais neutra.
Mas o tango, como toda a arte, faz nascer a alegria da criação de dentro da maior miséria, em face à mais profunda desgraça. Não é só por os poetas serem fingidores: é que a alegria da criação se vem sobrepor ao desespero da situação. Por isso Hoelderlin dizia que nós caminhamos radiosos sobre a nossa miséria.
Vamos pois ouvir tangos argentinos para uma cura de alegria. Há também um em que o amante traído se emborracha e, perdido de bêbedo, incita todos a imitá-lo e... Bom, se serviu para Manuel Bandeira, também servirá para nós.
Uma nota final, que não tem nada a ver: o espetáculo O Céu da Língua, de Gregório Duvivier é de tal maneira extraordinário, tão cheio de graça e de humor a aligeirar a profunda sabedoria, que eu gostaria que pudesse ser passado nas aulas de Português das nossas escolas. Que te parece, António Carlos Cortez?
Diplomata e escritor