Reaprender a comunidade?

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Reaprender e retomar a nossa convivialidade, que é uma maneira moderna de dizer comunidade: esta era uma das previsões mais habituais no período Covid, como desafio seguro para o tempo que se seguisse. Esse tempo, bem ou mal, já passou, mesmo que não nos números. E talvez agora descubramos, afinal, que nunca houve um tempo de comunidade tão forte como aquele, mesmo que com as distâncias, as máscaras, o isolamento físico.

Nada une as pessoas como um sentimento de desespero partilhado? Os tempos de guerra provam-no bem. A par também de episódios de mal e de egoísmo exacerbados, no seu extremo, a união reforçada, quando se vive num infortúnio comum, parece ser factual. A incerteza e o medo, que é sempre o medo da morte, esse absurdo, reduzem-nos ao mais essencial - a relação com o outro, a existência do outro. Agora, esse tempo passado, e eventualmente até num alegado processo coletivo de reaprender a convivialidade, estaremos também a limitar a comunidade entretanto criada?

O pressuposto habitual é o de que, portanto, a ideia de comunidade é necessariamente virtuosa, pressuposto cristão e não só. Mas é também possível denunciar a facilidade com que até as democracias ocidentais se tornaram opressivas de direitos individuais no período pandémico, umas com mais facilidade do que outras. "A necessidade pode muito", como já escrevia Fernão Lopes no século XIV. Essa opressão, que existiu, resultou simplesmente dos conceitos e mecanismos tradicionais de criação de ditaduras, que se resumem à ideia de excecionalidade. Tempos excecionais exigem medidas excecionais. Situações excecionais exigem lideranças e regimes excecionais. Riscos excecionais pedem um direito excecional. Portugal, aliás, como sempre o fez historicamente, seguiu simplesmente a sua linha costumeira de reduzir a liberdade e a decisão individual em favor de uma legitimidade simultaneamente comunitária e legalista, de virtuosismo inatacável. E habitualmente, a par da excecionalidade, vem também no discurso legitimador o pragmatismo, a necessidade e o respaldo científico. Nas políticas eugénicas como na resposta à Covid.

Note-se: não se discute ou aprecia o resultado ou sequer a existência de alternativas politicamente credíveis, mas apenas o processo. E deste acabou por fazer parte a valorização, até politicamente validada, de uma ideia acriticamente benévola de comunidade, funcionando como salvo-conduto para quase tudo. Ora a comunidade como bem superior é, como sabemos, um dos elementos estruturais e históricos da negação da liberdade - de todas elas, designadamente da liberdade política. Não ingenuamente, o atual discurso normalizador das relações sociais e mediáticas valoriza de forma simplificada a comunidade. Não por acaso, utilizadores de ferramentas técnicas são hoje categorizados, e de forma apreciativa, como "comunidade". A banalização e venalização do conceito ajuda apenas a reforçar a sua legitimidade ideológica. Temos a viver em nós e entre nós, como sempre, as palavras que normalmente nos destroem com as melhores intenções.

Professor da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa

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