Que guerra é esta?
Edgar Morin, para alegria dos seus amigos e admiradores chegou há dias à bonita idade de 101 anos e continua a pensar e muito bem. Preocupa-o o ambiente de guerra e a incerteza, de um conflito no centro da Europa, com repercussões globais. Se continuamos a dormir na nossa cama, há bombas e escombros na Ucrânia.
"Participamos na verdadeira guerra sem que tenhamos entrado nela, mas fazendo entrar armas e munições". A guerra internacionalizou-se. À agressão russa sucedeu a ajuda humanitária, alimentar e militar, defensiva e depois ofensiva. A escalada tornou-se inevitável, com o contributo dos Estados Unidos e dos países da União Europeia. A estratégia russa é implacável - e segue a linha de Jukov de 1945 com ataques maciços não só a alvos militares, destruição de Berlim, mortandades e violações de civis, o que então foi tolerado pelos sofrimentos e mortes infligidos pela Alemanha nazi às populações russas.
Como diz Morin, no caso da Ucrânia, "povo senão irmão ao menos primo próximo do povo russo, surge a dúvida sobre se as mortandades e violações são devidos à desordem de algumas tropas, ao furor da derrota ou à vontade de aterrorizar". De facto, não sabemos se a intenção primeira de Putin era a de fazer cair a Ucrânia como um fruto maduro, decapitando-a desde os primeiros assaltos. Hoje, sob a resistência ucraniana, a ambição será conquistar duravelmente as regiões maioritariamente russófonas do Donbass e do litoral de Azov. O ataque russo unificou os ucranianos, já que todos viram a sua casa ameaçada. Desde 2014 que se verifica uma prevenção armada. Daqui para a frente, salvo alterações no Kremlin ou um sucesso diplomático (cessar-fogo ou outro compromisso), a guerra está para durar, intensificando-se as destruições, com crescimento do carácter internacional do conflito. Há uma guerra indireta com retaliações económicas e uma escalada, com acusações de "criminalização recíproca" - com a ameaça russa de uma guerra avassaladora e rápida e a tentação de usar uma arma desconhecida. E a hipótese do lançamento involuntário e acidental de um engenho nuclear torna-nos prisioneiros da irracionalidade, do medo e do alargamento do conflito a outros territórios europeus. "Uma terceira guerra mundial, dum tipo novo, com utilização de armas nucleares táticas de alcance limitado, drones, ciberguerra com destruição de sistemas de comunicações que asseguram a vida nas sociedades seria a concretização lógica da amplificação da atual guerra internacionalizada". E a democracia pode ficar afetada pelo crescimento dos controlos e vigilâncias e pelo incremento da justificação dos atos próprios e da criminalização dos alheios. O Estado autoritário de Putin agravou-se e gerou uma caça às bruxas generalizada. E assim temos "a escalada da desumanidade e da destruição da humanidade", com predomínio das simplificações grotescas e destruição da complexidade.
Poderemos escapar a esta lógica infernal e a este arrastamento para o abismo? Edgar Morin fala duma paz de compromisso que instaure e garanta a neutralidade ucraniana, para prevenção da independência e primado do direito. As regiões russófonas e a Crimeia deveriam obter regimes especiais. As condições dum compromisso são tão claras quanto os bloqueios. A radicalização e amplificação da guerra impede a lucidez. A situação geopolítica da Ucrânia e a sua riqueza económica em trigo, aço, carvão, metais raros atraem os grandes predadores e as grandes potências. A Ucrânia é vítima da Rússia, do agravamento das tensões leste-oeste, da Chechénia e da Geórgia, do médio oriente em geral. O objetivo da Ucrânia deveria ser libertar-se da invasão russa e da armadilha da nova guerra fria. Também a União Europeia necessita de se ver livre desta camisa-de-forças. Uma crise económica gerada por sanções e seu reflexo gerará regressões autoritárias e sociedades submetidas. O humanismo e a racionalidade obrigam à cabeça fria do compromisso, que não salvará a humanidade, mas pelo menos poderemos ganhar com trégua e com esperança.
Administrador executivo da Fundação Calouste Gulbenkian