Quanto vale a vida de um palestiniano?

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Aquilo que se está a passar na Faixa de Gaza da Palestina, depois de um longo massacre da população a que muitos chamam, parece-me que com propriedade, de “genocídio”, e a que se acrescentou um arrasamento de edifícios, infraestruturas e apoios humanitários que deixaram dois milhões de pessoas abandonadas a uma sorte miserável e a um desesperado choro de milhares e milhares de mortos, era já mais do que suficiente para perdermos qualquer ilusão sobre a sensibilidade humanitária de Israel, pois a retaliação ao ataque terrorista do Hamas, a 7 de outubro de 2023, atingiu tal dimensão vingativa e assassina que ultrapassou há muito tempo o que seria eventualmente admissível.

O olhar para o lado dos dirigentes de países aliados de Israel sobre o que os líderes deste país fizeram na Faixa de Gaza, muito dificilmente não classificável como crime contra a humanidade, é a revelação aguda de como a retórica da superioridade política dos valores da democracia dita “liberal”, supostamente associada à defesa dos Direitos Humanos, não passa disso mesmo - retórica..., oca e, na prática, dispensável, conforme os interesses conjunturais.

O maior desses aliados de Israel, o país-modelo dessa tal “democracia liberal”, o autoproclamado “líder do mundo livre”, esses Estados Unidos da América que têm agora o presidente Donald Trump no poder, usaram a voz do seu líder político para anunciar a intenção de substituir a Faixa de Gaza por um projeto imobiliário, expulsando de vez os palestinianos, pondo as retroescavadoras a reduzir a pó os quilómetros de escombros que lá estão para, depois, construir a “Riviera do Médio Oriente”.

Trump explicou o seu projeto após uma reunião com o primeiro-ministro Netanyahu - que, entretanto, deu ordens ao Exército israelita para elaborar um plano de retirada da população da Faixa de Gaza - mas, na verdade, tal como outras coisas aparentemente mirabolantes que tem dito e decidido desde que tomou posse, já antes havia anunciado ter essa intenção - só é apanhado de surpresa quem andou muito distraído.

Parece que estamos a voltar ao século XIX e à Conferência de Berlim (1884-85) quando os impérios europeus dividiram entre si a África para controlar recursos como diamantes, ouro e borracha, uma disputa que levou a múltiplos massacres e a enormes migrações forçadas - um crime do capitalismo que muitos tentam fazer cair no esquecimento.

Ou quando os alemães expulsaram, na atual Namíbia, no início do século XX, os povos herero e nama das suas terras para explorar as minas e criar gado.

Ou quando, também no século XIX, os índios norte-americanos foram expulsos das suas terras pelo governo dos Estados Unidos e obrigados a migrar pelo trágico Caminho das Lágrimas.

Ou quando, também nesses tempos, os aborígenes da Austrália foram expulsos pelos ingleses das suas terras férteis e ricas, roubadas pelos ingleses.

Mas essas e outras barbaridades semelhantes aconteceram há muito tempo, até parecia que nunca mais voltariam...

Porém, na verdade, graças a Israel e aos EUA, pode-se, afinal, fazer esta incrível pergunta: na taxa de investimento imobiliário do século XXI, quanto pesa a vida de um palestiniano?

Não sei quem está a tentar ganhar uma fortuna com a ideia da “Riviera do Médio Oriente”, sei que o capitalismo perdeu a vergonha de esconder a sua natureza selvagem e predatória e não se importa, tal como há 100 ou 200 anos, de proclamar alto e a bom som que a dignidade humana, e mesmo a vida, valem muito menos do que um razoável monte de dinheiro.

Jornalista

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