Quando se ultrapassa o abismo separador

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Em 2019 o Chega conseguiu eleger para a Assembleia da República um deputado. 

Em 2025, isto é, seis anos depois, elegeu 60 deputados. 

O que é que se passou, entretanto, na sociedade e na vida política portuguesa que permitiu essa evolução exponencial?  

É claro que, entretanto, por quase toda a Europa emergiram movimentos populistas e nacionalistas que alteraram o espectro político-partidário num conjunto alargado de países e, numa perspectiva de longo prazo, seria sempre difícil que Portugal não fosse sensível a uma evolução com estas características. 

Mas, existem, também, razões particularizantes que dizem respeito ao caso concreto do nosso querido País. 

Com o nascimento da Democracia pós-25 de Abril, ficaram, inicialmente, alguns “traumas” por resolver, desde a “descolonização” aos “retornados”, passando pelos excessos do “gonçalvismo”, vários foram os factores que potenciaram o risco de uma direita conservadora saudosista não se rever no novo regime político em Portugal. 

Mário Soares, um grande socialista democrático e social-democrata que colocava a defesa da Democracia acima da sua própria ideologia, percebeu que existia, potencialmente, um problema. 

E aquando das suas divergências com Sá Carneiro quanto ao “rumo” da vida política nacional, em 1978, percebeu que era mais importante conquistar a direita para a democracia do que procurar um “compromisso social” com o Partido Comunista. 

Na mesma altura em que Mitterrand já avançara para o Congresso de Pau com o projecto de Frente Popular, defendendo que a melhor estratégia para o Partido Socialista Francês era a criação de uma União da Esquerda, Mário Soares percebeu que era preferível negociar a presença do CDS no governo do PS e assim o fez. 

Aceitou a entrada de membros do Grupo de Intervenção Socialista (liderado por Jorge Sampaio) no PS, mas fez, entretanto, um acordo de governo com o CDS. 

E, mais tarde, quando se tratou de negociar a entrada de Portugal na Europa não pensou em conciliar com o PCP, antes construindo um governo de Bloco Central com o PSD. E, note-se, não foi preciso haver guerra na Europa. 

Mais, o PCP nas primeiras legislaturas chegou a ter mais de 40 deputados. 

E não foi isso que fez Mário Soares hesitar. 

É que na vida importa não ultrapassar certos abismos separadores. 

Importa não ultrapassar o abismo separador entre democracia e anti-democracia, reformismo e revolução, respeito pela liberdade de expressão e de associação e exercício de um poder autocrático, respeito pelo princípio da separação de poderes e defesa de uma justiça revolucionária, aceitação do Direito Internacional e respeito pela Carta das Nações Unidas e defesa de uma abordagem transaccional que assenta na correlação de forças. 

Pela primeira vez, em 2016, o Partido Socialista rompeu, a nível nacional, com a estratégia que sempre seguiu, chegando a acordo com dois partidos de matriz revolucionária. 

Um, o Bloco de Esquerda, criado por elementos que vinham do trotskismo (PSR), do estalinismo (UDP) e do marxismo-leninismo, que estava contra a UE, contra o euro e contra a NATO, muito embora tivesse evoluído para a aceitação do reformismo de tipo “jaurèsiano”, admitindo o princípio da evolução reformista e democrática. 

Um outro, o PCP, que ainda hoje em dia se diz marxista-leninista, que promoveu o sequestro da Assembleia Constituinte (com o argumento que, hoje em dia, alguns dos seus membros invocam de que se tratou de uma manifestação com fins laborais, como se uma Assembleia Constituinte gerisse problemas atinentes a legislação corrente na área laboral) , que participou na Frente Unida Revolucionária, com a Frente Socialista Popular, a LCI (de orientação trotskista) e com as Brigadas Revolucionárias, que até hoje nunca criticou o regime da Coreia do Norte, que apoia Maduro na Venezuela e que, na prática, entende que Putin deveria anexar a Ucrânia (já que entende que não faz sentido ajudá-la militarmente), sendo um partido de matriz manifestamente anti-democrática. 

E, note-se, entre 2019 e 2025, a extrema-direita passou de um deputado para sessenta em Portugal. 

No fundo, o PS ao “normalizar” certo tipo de organizações políticas, permitiu que uma certa direita “normalizasse”, em termos comportamentais, a sua manifestação de apoio a sectores populistas radicais. 

Não se pode ter autoridade moral para condenar a contemporização com a extrema-direita quando se fazem acordos com a extrema-esquerda. 

E era sabido que a emergência do que se convencionou designar de “geringonça” haveria, um dia, de provocar consequências maléficas. 

Felizmente, a direita democrática tem resistido a essa tentação, mas tal não significa que a Esquerda Democrática não tenha cometido um erro lamentável. 

E seria útil que o PS retomasse os caminhos de Mário Soares. 

Nem mais, nem menos… 

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