Quando os ultras se disfarçam de estadistas: o exemplo francês

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Tudo indica que neste domingo à noite nos encontremos, enquanto europeus, perante duas novas crises existenciais. Uma relativa à França, e a outra sobre o futuro da União Europeia. 

Juntar-se-ão aos enormes desafios que já enfrentamos face à violência imperialista e assassina de Vladimir Putin, à fragmentação que as recentes eleições para o Parlamento Europeu revelaram e à nossa perda de influência estratégica numa arena internacional cada vez mais competitiva e reticente à cooperação com a UE. E não menciono o que poderá acontecer ao nosso relacionamento com Washington, se Donald Trump ganhar as presidenciais de novembro. 

Quem estiver à frente das instituições europeias – apenas António Costa está confirmado – terá de mostrar qualidades excecionais de mediação, uma imaginação política ímpar e uma firmeza inquebrantável na defesa do projeto europeu. Serão esses os três critérios que definirão, para o bem ou para o mal, o tipo de liderança que se instalará em Bruxelas. 

Para já, a França entrará num período caótico. Não é preciso ir à bruxa para fazer tal previsão. Emmanuel Macron chegou à presidência em 2017 com uma prioridade clara: evitar que a ultradireitista Marine Le Pen conquistasse o poder. Sete anos depois, assistirá agora à derrocada desse seu intento. Macron, ao convocar estas eleições inesperadas e imprudentes, terá cometido um erro político fatal. 

Le Pen e o seu delfim, Jordan Bardella, não deverão conseguir a maioria absoluta na Assembleia Nacional, mas constituirão, de longe, a maior bancada parlamentar. Se obtivessem essa maioria, Macron teria de nomear Bardella como primeiro-ministro. Seria uma coabitação de facas longas, um conflito sem tréguas. 

Também pode acontecer que Le Pen e Bardella procurem estabelecer acordos com alguns deputados da direita, para chegar à maioria absoluta. O risco existe, não haja dúvidas. Teoricamente, há ainda uma outra alternativa: um governo de tecnocratas, de iniciativa presidencial. A viabilidade desse esquema é praticamente nula. Não reuniria apoio parlamentar suficiente.

Se não tiver a maioria absoluta, a extrema-direita tentará criar um impasse político total, e assim fazer de Macron a pedra no sapato de um país ingovernável. Le Pen e os seus empenhar-se-ão para fazer crer que a continuação de Macron no poder levará a França à paralisia. Tentarão criar um clima de agitação social que o encurrale e leve à demissão. Os extremistas, quando conseguem pôr um pé no estribo, não largam as rédeas. Procuram, antes sim, tomar conta em absoluto da montada. O totalitarismo é a fase seguinte. O passado e o presente estão repletos de exemplos. 

Está muito bem enganado quem pensa que a governação por radicais tem a vantagem de mostrar, com o tempo, a sua incompetência, conduzindo o país à ruína. Essa gente não hesita em hipotecar o presente e o futuro, nem em vender a alma ao diabo, para financiar as suas políticas demagógicas de manipulação da opinião pública. A única regra que os anima é manter o controlo do poder, a todo o custo. A democracia passa a ser uma farsa e as eleições uma fraude. 

Com o apagamento político de Macron, a UE só poderá ficar mais fragilizada. Le Pen fala agora baixinho e com voz mansa sobre as questões europeias. É um truque para ganhar credibilidade junto de algumas camadas do eleitorado. A sua posição é, porém, profundamente hostil à existência da UE. Para começar, se o seu partido estiver no governo, tudo fará para diminuir a contribuição financeira da França. Precisará, aliás, desses fundos para financiar as suas políticas, depois de ter prometido o céu e a terra. Serão uns tostões, mas o volume das promessas foi tal que todos os cêntimos contam. 

Depois criará obstáculos à livre circulação dos europeus e ao desenvolvimento de projetos que não tenham a França como líder. E não se esquecerá dos favores que deve a Putin. 

Os extremismos arruinaram a Europa no passado. A xenofobia e os ultranacionalismos, ainda vivos em vários cantos da Europa, não apenas em França, recordam-nos páginas sombrias da nossa história comum. Não podemos deixar que moldem o nosso futuro. 

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