Quando o novo normal não é assim tão diferente
Uma das muitas consequências da pandemia associada ao COVID-19 foi a introdução de um novo conceito nas nossas vidas: o "novo normal". Este conceito relaciona-se com um novo contexto percecionado como não tendo precedentes. Todo este conjunto de mudanças colocam exigências de adaptações pessoais e coletivas, ou, poderão resultar no aumento do risco de dificuldades de ajustamento pessoal e/ou social.
O impacto da COVID-19 na saúde pública não se limita às suas consequências físicas (número de infetados, internados, mortes), nem se restringe às diferentes consequências físicas nas pessoas afetadas pelo vírus. A COVID-19 tem igualmente um impacto silencioso, tantas vezes vivido numa solidão privada, na saúde mental. Tal como, mais uma vez, foi salientado pela Organização Mundial de Saúde (OMS), prevê-se um aumento de perturbações mentais e suicídios associados à situação pandémica.
Por que razão tal poderá suceder? Habitualmente, orientamo-nos por um conjunto de crenças implícitas - ainda que ilusórias - que permitem manter a sanidade mental: a crença na benevolência do mundo e das outras pessoas, a crença no significado e controlo sobre a nossa vida, e a crença sobre o nosso valor próprio e capacidade em superar as dificuldades. O "novo normal" abalou estas crenças: o mundo e as outras pessoas passaram a ser percecionados como fontes ameaçadoras de transmissão de um vírus, percecionámos uma perda de significado da nossa existência, e, muitas vezes, duvidámos do próprio valor e capacidade em superar esta situação imprevista.
Estas mudanças na forma de percecionar o mundo, os outros e o próprio, repercutem-se na pluralidade de respostas psicológicas às próprias exigências de prevenção da pandemia. O confinamento compulsivo, a proteção individual com utilização de máscaras, a manutenção do distanciamento social e a vigilância permanente da evolução da situação pandémica originam uma ativação constante do sistema de alerta em resposta a situações de ameaça. Existe ampla evidência da investigação de que a ativação de respostas psicológicas e fisiológicas de alerta em pessoas expostas a situações repetidas de stresse aumentam o risco de doenças físicas e/ou psicológicas duradouras.
Por outro lado, a necessidade de manutenção de distanciamento social como medida preventiva de disseminação da pandemia poderá ter efeitos colaterais num conjunto considerável de pessoas. Primeiro, o distanciamento social pode originar situações graves de isolamento que aumentam a vulnerabilidade de problemas psicológicos. Segundo, o isolamento social poderá aumentar os riscos de recaída de problemas psicológicos em situações em que tinha sido alcançado equilíbrio psicológico.
Mas corremos todos esse risco? Obviamente que devemos considerar a presença de diferenças individuais nas respostas a este contexto. Mas a resposta será: uns mais do que outros. Estudos recentes sobre o impacto da pandemia da COVID-19 na saúde psicológica têm verificado que os grupos com maior vulnerabilidade são os mesmos que já apresentavam essa suscetibilidade antes da pandemia: crianças e adolescentes, mulheres em risco de violência doméstica, idosos, pessoas com condições mentais preexistentes e pessoas com maiores dificuldades económicas (por maior dificuldade de acesso aos serviços). A estes acrescentamos os profissionais de saúde por via da experiência de stresse associada à sua atividade profissional por repetido confronto com experiências de ansiedade ou potencialmente traumáticas.
De acordo com as previsões de significativos custos económicos e sociais a longo prazo, estas consequências irão igualmente incluir um aumento do número de casos de problemas de saúde mental, em muitas situações, de carater duradouro. Não nos podemos esquecer que o encerramento ou as restrições das atividades de muitas empresas, as ameaças de situação de desemprego, assim como o impacto das perdas pessoais e sociais, intensificará a perpetuação de crenças e sentimentos negativos. Por outro lado, as dificuldades económicas e sociais previstas resultarão na manutenção das dificuldades de acesso a serviços de saúde dos grupos mais vulneráveis. Neste contexto, urge não ignorar o alerta da OMS para a necessidade de os governos não negligenciarem o apoio psicológico e a intervenção na saúde mental face ao, mais que previsível, aumento de problemas psicológicos na população.
Então, o que sucederá se os governos não efetuarem, como alerta a OMS, o investimento necessário na saúde psicológica, concretizado em equipas de saúde mental (psiquiatras, psicólogos e outros profissionais de saúde) indispensáveis para fazer face à "pandemia", que se prevê, de sofrimento psíquico? A resposta é: afinal, o "novo normal" não é assim tão diferente na resposta à saúde mental.
Docente da Faculdade de Ciências da Saúde e do Desporto da Universidade Europeia