Quando o bode expiatório é o Advogado e o Contribuinte

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As recentes acusações do Sindicato dos Trabalhadores de Impostos (STI), que elegem os advogados como bodes expiatórios da evasão fiscal, são mais do que uma polémica corporativa: são o sintoma de uma profunda disfunção na relação entre o Estado e o contribuinte. A sugestão de vigiar a faturação da advocacia, repudiada pela Ordem dos Advogados como uma "suspeição generalizada e infundada", desvia o foco do verdadeiro problema: um sistema que parece partir da presunção de culpa do cidadão e que ataca o seu direito fundamental, aliás, com previsão constitucional – o direito a aconselhamento jurídico.

A fronteira entre o que é legal e ilegal é, em teoria, clara. O planeamento fiscal é um direito que assiste aos contribuintes e que lhes permite organizar a atividade económica para minimizar impostos, respeitando a lei. A evasão fiscal é um crime que consiste em violar a lei para não pagar o devido. Para salvaguarda dos cidadão e empresas contribuintes, a matéria de impostos é sujeita ao princípio da tipicidade: não há imposto sem lei expressa que o preveja, sendo proibido à Autoridade Tributária (AT) criar obrigações por analogia ou por interpretações extensivas, ou mesmo, como muitas vezes acontece por pura “alucinação” orientada para a coleta de impostos indevidos à luz da lei vigente. A prática mostra uma realidade diferente daquela que o STI quer fazer crer aos incautos existir. A AT explora, ela sim, as zonas cinzentas, emitindo liquidações que são, com uma frequência alarmante, declaradas ilegais em tribunal. Os números não mentem. Em 2023, os tribunais arbitrais (CAAD) deram razão aos contribuintes em 63,3% das decisões. No caso do IRS, a taxa de sucesso dos cidadãos contra o Fisco foi superior a dois terços. Estas estatísticas provam um padrão de atuação abusivo e ilegal.

A AT sabe que, por cada contribuinte que luta e vence em tribunal, muitos outros, intimidados pela ameaça de penhoras imediatas de contas e bens, são coagidos a pagar quantias que não devem. É uma "injustiça eficiente": arrecada-se receita à custa do medo e da coação, invertendo por completo o ónus da prova e forçando o contribuinte a provar a sua inocência, neste caso, que nada deve.

A causa desta agressividade sistémica parece residir, essencialmente, num incentivo perverso: os funcionários da AT recebem prémios de desempenho ligados à cobrança coerciva. Em 2023, este fundo de bónus atingiu os 64,7 milhões de euros, correspondentes a 5% da receita forçada. Este mecanismo cria um conflito de interesses, em que o ganho do funcionário está ligado à cobrança, seja ela justa ou não.

O impacto económico desta abordagem é devastador. Empresas viáveis são levadas à insolvência por penhoras agressivas decorrentes de dívidas que, muitas vezes, os tribunais vêm a considerar indevidas. Ao destruir o tecido empresarial, o Estado destrói a sua própria base tributária futura – IRC, IVA, TSU – numa política economicamente irracional, abusiva, ilegal e injusta para quem honestamente desenvolve uma atividade económica.

Cada empresa que a AT fecha, representa não apenas uma perda de postos de trabalho diretos, mas também uma quebra na cadeia de valor que afeta fornecedores, clientes e a economia local. A incerteza e o risco legal criados por este modus operandi absolutamente repugnante, funcionam como um travão ao investimento, onerando as empresas com custos de litigância e prejudicando a competitividade do país: depois, é ouvirmos os políticos queixarem que os estrangeiros não investem. Só compram imóveis. Porque será?

A discussão não pode ser sobre uma suposta conspiração de advogados e dos seus clientes (contribuintes), mas sim sobre um modelo de administração fiscal que se tornou predador, cego e injusto. É imperativo reequilibrar a balança da justiça fiscal. A solução passa, necessariamente, por medidas concretas: abolir o sistema de prémios que incentiva o abuso; obrigar a AT a respeitar as decisões dos tribunais e a não recorrer sistematicamente sem fundamento; e a reformar o processo de execução fiscal para proteger os contribuintes cobranças indevidas. Um sistema fiscal justo e eficiente constrói-se com base na confiança e na certeza do direito, não no medo e na arbitrariedade coercitiva e cobradora. Proteger os cidadãos e as empresas que sustentam o país não é um favor, é a fundação de um Estado de Direito democrático. É um fator de estabilidade e segurança do crescimento do investimento e da economia.

Advogado

Sócio fundador da ATMJ – Sociedade de Advogados

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