Quando a realidade ultrapassa a ficção
Um curioso tweet de Carlos Moedas anunciou recentemente ao mundo que o autarca tinha sido nomeado para o novo Conselho Consultivo Europeu para a Habitação. Para não correr o risco da boa-nova passar despercebida, a Câmara de Lisboa amplificou a mensagem com um comunicado oficial que rejubilava com o facto de ter “o único presidente de câmara a integrar” o grupo criado pela Comissão Europeia. Ao seu lado estariam “outros altos responsáveis políticos de vários países”.
Mas o que é, afinal, o House Advisory Board? Apesar da pomposa tradução, é apenas mais um entre 1.118 grupos de especialistas ativos em torno de grandes áreas, da defesa à segurança alimentar. Com uma infinita sabedoria, Bruxelas promove task forces, comissões e subcomissões sobre quase tudo, da emissão do ruído à produção do tomate. Finalmente em 2025, a Habitação tornou-se uma preocupação para a Comissão Europeia.
A segunda nota vai para a seleção dos especialistas que integram este Board. Como anuncia na sua página, a Comissão recrutou-os entre 200 candidaturas, o que significa que foram os interessados a concorrer. Refira-se que entre os 15 selecionados há altos funcionários europeus e diretores de institutos europeus, mas principalmente professores universitários e investigadores na área - o que tem alguma lógica, tendo em conta que este grupo deverá entregar recomendações técnicas para o futuro Plano Europeu para Habitação Acessível.
Além de Carlos Moedas, o único político que se submeteu a este concurso foi o ex-ministro do Ambiente da Irlanda. Não consta dos selecionados qualquer outro “alto responsável político”, muito menos no ativo. Suponho que um membro de um governo ou mesmo um autarca em funções tenha pouco tempo para dedicar ao estudo de soluções técnicas. Quando se trata de tomar decisões, os responsáveis políticos costumam geralmente rodear-se de especialistas e grupos de trabalho, não integrá-los. Carlos Moedas tem, aparentemente, pouco com que se preocupar em Lisboa e dispõe de tempo para viagens e reuniões em Bruxelas.
Mas - e vamos agora ao que me trouxe a este tema - ao contrário do que diz, a posição a que afinal concorreu não é “um reconhecimento do modelo que desenvolveu para a habitação em Lisboa” porque não há nada que sirva de modelo, exemplo ou sequer inspiração a ser feito na capital portuguesa. Moedas proclama um “investimento histórico” no setor, embora essa circunstância não resulte de qualquer decisão sua, muito menos da sua ação. Lisboa tem todo este dinheiro para investir (cerca de 900 milhões de euros até 2026) graças a fundos europeus e ao programa 1.º Direito do Governo PS. A questão que deve ser colocada é o que fez o autarca com tanto dinheiro? A resposta não pode deixar de chocar. Fez praticamente o mesmo número de casas que o executivo anterior, sendo que quase metade foram herdadas já em obra ou projeto. Na requalificação nos bairros municipais limitou-se a pintar as fachadas, deixando o interior e as áreas comuns como estavam. As medidas que considera “totalmente inovadoras”, como as ajudas ao pagamento das rendas e a disponibilização de casas a agentes da PSP, já vinham de trás. Moedas conseguiu aprovar uma cooperativa habitacional na reta final destes quatro anos.
O país onde o preço da Habitação mais sobe, onde conseguir viver na capital passou a ser um luxo em vez de um direito, conseguiu a proeza de ter um autarca que devia estar a construir habitação a custos controlados sentado num comité para aconselhar terceiros sobre o que não conseguiu fazer. Nenhum argumentista se lembraria de tal coisa.
Presidente da Junta de Freguesia de Alcântara