Quando a democracia é testada: a resiliência da Coreia do Sul

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No dia 3 de dezembro, por volta das 22h24, o Presidente sul-coreano Yoon Suk-yeol, do Partido do Poder do Povo (PPP), declarou a imposição da lei marcial de emergência, evocando os tempos da ditadura militar vivida na Coreia do Sul durante os anos 80. Quase instintivamente, cidadãos sul-coreanos de várias faixas etárias mobilizaram-se para rejeitar esta clara tentativa de golpe de Estado. No parlamento, 190 deputados votaram unanimemente para anular a decisão. Logo a seguir, a oposição avançou com um pedido de destituição do presidente, que falhou numa primeira tentativa devido ao boicote de quase todos os deputados do PPP. Numa segunda votação, realizada no passado sábado (14), o processo de destituição foi finalmente aprovado pelo parlamento, graças ao voto favorável de 12 deputados do partido no poder.

O decreto da lei marcial de emergência está a ser interpretado como reflexo de uma atitude “desesperada” de um presidente que ficou conhecido por estar envolto em controvérsias, incluindo escândalos ligados à sua esposa. No entanto, o presidente justificou o decreto aludindo a uma vaga “ameaça” de forças anti-estatais pró-norte-coreanas infiltradas na política sul-coreana. A instrumentalização da ameaça externa para desviar atenções dos problemas internos ecoa táticas tipicamente atribuídas ao regime de Pyongyang. Esta justificativa, sem qualquer evidência, leva-nos a refletir sobre o estado da democracia sul-coreana e os motivos reais por detrás desta decisão.

Em retrospetiva, uma ação previsível

Embora aparentemente “irracional”, a decisão de decretar a lei marcial não é completamente inesperada quando analisada face ao contexto doméstico. As tendências autoritárias já se faziam sentir desde a chegada de Yoon ao poder, em maio de 2022 — após uma vitória eleitoral, em março do mesmo ano, por uma margem muito reduzida, contra o Partido Democrático (PD), liderado por Lee Jae-myung. Importa notar, aliás, as suspeitas de manipulação da opinião pública para favorecer Yoon nessas eleições.

A nível internacional, o Presidente Yoon cultivou, desde o início da sua governação, a imagem de defensor dos valores democráticos e liberais — celebrado entusiasticamente em Washington. Contudo, a nível interno, a sua governação tem sido marcada por práticas questionáveis. Entre as decisões mais controversas está, desde logo, a transferência do seu gabinete da Casa Azul para um edifício junto ao Ministério da Defesa, contra a vontade popular, o que gerou suspeitas quanto às suas intenções (nomeadamente a possibilidade de o presidente querer deslocar-se para um local onde estivesse mais protegido de possíveis protestos). Além disso, tem sido acusado de suprimir a liberdade de imprensa (contra vozes mais críticas ao governo) e de bloquear investigações através do poder de veto, como no caso da tentativa de realização de uma inspeção especial para apurar responsabilidades face ao trágico incidente de Itaewon, onde 159 pessoas perderam a vida. Foi também com ele que a Coreia do Sul voltou a realizar uma parada militar no centro da capital, numa tentativa de demonstração de força.

Com índices de aprovação baixos (19%), a ação política de Yoon tem enfrentado dificuldades adicionais desde abril deste ano. Nas eleições legislativas, a oposição conquistou a maioria no parlamento, dificultando a implementação da sua agenda política. Por essa razão, o conflito em torno da discussão do orçamento parece ter sido a causa imediata para a declaração da lei marcial. Ao contrário de Portugal, que funciona de acordo com um sistema semipresidencial, a Coreia do Sul goza de um sistema presidencial. Isto significa que, perante um bloqueio governativo, as duas soluções possíveis são a destituição (apresentada pela oposição) ou a demissão por parte do presidente em funções. A atual situação pode, até, demonstrar a necessidade de alguma reforma do sistema, nomeadamente no que diz respeito à concentração de poder no gabinete e na figura do presidente (um problema apelidado de ‘presidência imperial’). É de saudar a

população, os deputados e as instituições democráticas da Coreia do Sul. Yoon subestimou não apenas a sua população — que já em 2016-2017 demonstrara a sua cultura cívica e de protesto numa situação semelhante — como também o exército, que parecia estar desorganizado e hesitante em apoiar tal medida. O líder do seu próprio partido apoiou de imediato a anulação da lei marcial, e os meios de comunicação social continuaram a funcionar com normalidade, recusando aderir a esta manobra autoritária.

O impacto interno e externo

Toda esta situação sobressai pela sua aparente incompetência, mas ainda bem que assim o foi. Já o impacto da crise é profundo, tanto a nível doméstico como internacional.

Se o objetivo de Yoon era procurar consensos com a oposição, não é com a declaração da lei marcial que esse processo foi facilitado. Pelo contrário, colocou-o numa situação de imensa fragilidade. Por outro lado, o facto de o presidente deter o poder de decretar a lei marcial — prevista na constituição para casos extremos em que a segurança nacional se encontra em risco — é inconcebível que o faça face a frustrações com a oposição, cujo papel é precisamente agir como contrapeso numa democracia livre e plural. A última vez que a lei marcial foi acionada ocorreu há 44 anos, quando foi utilizada por ditadores como Park Chung-hee (1961-1979) e Chun Doo-hwan (1980-1987) para se perpetuarem no poder. A leitura sobre o massacre de Gwangju (1980) basta para se perceber a gravidade desta situação e a indignação e revolta imediata da população face à declaração desta lei em 2024.

A destituição de Yoon não é só inevitável, como necessária. Demissões dentro do próprio gabinete do presidente seguiram-se rapidamente, sendo que muitos não tiveram sequer conhecimento prévio ou estiveram contra esta ação unilateral do atual presidente (apoiada pelo Ministro da Defesa, que, entretanto, se demitiu).

Num cenário de novas eleições, é provável que Lee Myung-jae assuma a liderança. Não que a oposição não tenha os seus próprios problemas: o líder também se encontra envolvido em investigações por parte da justiça. Para além disso, a primeira resolução de destituição do presidente Yoon incluía menções a nível de política externa, nomeadamente às relações externas com o Japão, marcadas por um sentimento antagónico (acusando o PPP de nomear pessoas pró-Japão para cargos no governo), irrelevante para o propósito principal do processo de destituição.

Nesse sentido, é possível que vejamos alterações no curso da política externa sul-coreana. O único verdadeiro ‘sucesso’ associado ao Presidente Yoon era exatamente a política externa. Ele forçou uma aproximação, com algum êxito, entre a Coreia do Sul e o Japão, apesar das tensões políticas por razões históricas. A nível europeu, debatia-se a possibilidade de ajuda direta e militar à Ucrânia, como resposta à colocação de tropas norte-coreanas em território russo para auxílio no esforço de guerra contra a Ucrânia. Na visão daqueles que escolhem dividir o mundo em blocos, a aliança tripartida EUA-Japão-Coreia do Sul encontrava-se mais unida para fazer face ao bloco composto pela China-Rússia-Coreia do Norte.

Um governo sul-coreano liberal pode, assim, colocar em causa estes cenários. Pode significar, nomeadamente, uma política externa menos militarista e mais aberta à conciliação, em relação não só à China e à Rússia, mas especialmente em relação à Coreia do Norte. Existia um receio claro de que, perante a reeleição de Donald Trump (que já expressou em várias instâncias a sua ‘afinidade’ com Kim Jong Un), uma administração Yoon pudesse ser excluída de potenciais negociações entre as partes quanto ao programa nuclear norte-coreano. Apesar de ser difícil imaginar uma mudança significativa na abordagem política dos EUA, uma alteração de governo na Coreia do Sul poderá resultar num cenário semelhante ao de 2018, com a Coreia do Sul a retomar o seu papel de mediadora entre as partes. Todavia, este cenário vai depender muito mais da vontade da liderança em Pyongyang, que recentemente classificou a vizinha no Sul como um ‘estado hostil’, dificultando tentativas de diálogo. A Coreia do Norte quebrou o silêncio através dos seus órgãos de notícias estatais, relatando a destituição do presidente “fantoche” à sua audiência doméstica. É provável que Kim Jong Un tenha assistido à desordem em Seul com algum agrado e que a liderança vá utilizar esta crise para reforçar a sua narrativa e imagem como a Coreia ‘bem-comportada’ e ‘responsável’.

O povo é quem mais ordena

Face aos acontecimentos recentes, a imagem e reputação da Coreia do Sul como potência global ficaram claramente abaladas. É algo criticável que os EUA e a União Europeia tenham aplaudido a anulação da lei marcial, evitando condenar diretamente a tentativa de golpe de Estado perpetuada pelo presidente atual. Mais uma vez, parece existir um desfasamento entre a política externa defendida na base dos valores, que parece ser aplicada com rigor aos “outros”, mas sujeita a uma cegueira seletiva em relação aos “nossos”. Esta dualidade contribui para a deterioração da credibilidade da ordem liberal e progressista que, em teoria, desejamos defender e fazer valer face a alternativas autoritárias.

Os eventos na Coreia do Sul inserem-se num contexto mais amplo de erosão democrática que afeta várias partes do mundo. Contudo, estas crises também representam um teste e trazem sinais de esperança. Apesar das falhas, a democracia sul-coreana resistiu num momento de crise. Resta saber se o Tribunal Constitucional confirmará a destituição, perante um presidente que insiste em “não desistir” do cargo. De qualquer modo, a principal lição a retirar desta situação é que, diante a ameaça iminente de perda de direitos e liberdades, a população não hesitou em tomar as ruas, reafirmando que a preservação da democracia exige luta constante e uma cidadania ativa.

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