Qual o mal de chamar "preta", afinal?

Que o caso do take da Lusa sirva para que de uma vez se perceba que a linguagem é o princípio e o fim de tudo, o campo de batalha onde se travam todas as guerras. E que não pode haver "imparcialidade" ou sequer ingenuidade no jornalismo em termos de direitos humanos.
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"Quem é? É o preto da Guiné, lava a cara com café." Ouvi isto na minha infância, cantei isto na minha infância, como, presumo, a maioria das crianças da minha idade num Portugal ditatorial que só em 1962, dois anos antes de eu nascer, tinha abolido o Estatuto do Indígena, a determinação legal que fazia da maioria das populações negras de Moçambique, Angola e Guiné infra-humanas, submetidas a trabalho forçado e outras barbaridades, e considerava ter o direito de manter o domínio colonial sobre territórios cujo povo não era branco - portanto a necessitar de tutela, a nossa tutela. Fazia sentido num país com esse grau de racismo legalizado que as crianças brancas e até as negras aprendessem lengalengas que faziam da pele mais escura - dos "escurinhos" - uma piada. Dizer "preto" era como dizer "cocó" ou "xixi", uma segura forma de arrancar gargalhadas da meninada. "Preto" era um "outro" apalhaçado, uma anedota em figura de gente - se como gente era sequer vista.

Cresci a ouvir piadas do mesmo tipo - como as famosas anedotas de Samora Machel, que faziam do político moçambicano um primitivo com limitações cognitivas. Cresci, portanto, a ver os "pretos" como cómicos - tanto mais cómicos quando se queriam parecer "connosco", os brancos, os superiores, os sérios. Mesmo alguém tão amado como Eusébio - que foi mesmo muito amado e que eu adorava sinceramente - era gozado pela forma como falava. Como gozo era a utilização do black-face: pintar a cara com café, precisamente, para "fazer de preto", portanto de palhaço.

Não se sacode, não se perde de um dia para o outro esta herança - que aliás, incrivelmente, permanecia pelo menos até 2015 em livros escolares, caso do Livro de Fichas Alfa de Português do 2.º Ano (para crianças de sete anos, portanto), da Porto Editora, onde num exercício se pede para colocar acentos numa "lengalenga" semelhante: "Truz Truz/Quem é?/É o preto da Guiné.../ O que traz?/ Café."

Não é por a consciencializar e tentar contrariá-la que não a encontro em mim muitas vezes, como em muitos dos meus próximos - nessa espécie de derrisão maldosa, chocarreira, contida na expressão "preto", razão pela qual, não sendo exatamente o equivalente português de nigger (esse seria o repugnante, indizível, "escarumba"), tem uma clara ressonância insultuosa. Daí que o que sucedeu na semana passada num take da Lusa, o parêntesis com "preta" a seguir ao nome da deputada socialista Romualda Fernandes, me tenha soado logo a brejeirice, quiçá para deleite dos que iam ler o texto antes da sua publicação, como o famoso "lelé da cuca" que um Marcelo Rebelo de Sousa jornalista do Expresso aplicou num texto da secção Gente ao dono do jornal (Balsemão) e foi publicado assim mesmo porque ninguém emendou.

Hugo Godinho, o autor do take, terá dito ao Conselho de Redação da Lusa que o "preta" se tratava de "uma indicação" e "se esqueceu de a apagar". Indicação de quê e porquê não vem referido na notícia do Público que colheu a explicação na ata da reunião do CR, pelo que se deduz não terá esclarecido. Mas afirmou que "preta" não possui "sentido pejorativo", embora pedisse desculpa pelo que admite ser "um erro".

Não conheço Hugo Godinho. E acho, porque detesto linchamentos, que tem todo o direito, como qualquer pessoa acusada de um delito (no caso, deontológico), a defender-se e a ter um processo justo, seja na Lusa seja no órgão fiscalizador da ética jornalística, a Comissão da Carteira de Jornalistas - que já anunciou que vai discutir o caso na próxima reunião. Mas gostava mesmo de perceber o que considera "um erro": não ter apagado a "indicação"? Ou tê-la feito, apesar de a reputar de anódina?

Romualda Fernandes diz que Godinho lhe tentou falar e pediu desculpa. É bom. (Como é bom que na Lusa tenham sido lestos a reagir: o editor de política, que não retirou aquele insuportável parêntesis - por, alega, não o ter visto, o que sucede -, demitiu-se; a direção apresentou um pedido de desculpas e anunciou um processo de averiguações). Mas não chega, lamento. Um jornalista, e mais ainda numa agência de notícias pública, não pode em 2021 afetar ingenuidade quanto ao uso de uma palavra como "preta", quanto mais usá-la nas circunstâncias em que usou. Não pode pedir desculpa como se tivesse deixado cair uma travessa, como se fosse um acidente. Não é um acidente sermos racistas - fomos educados para o ser e faz parte do papel do jornalismo consciencializar, desconstruir e combater isso. Lamentável que quer a Comissão da Carteira quer o Sindicato não tenham feito questão de, face a este caso, tornar clara essa obrigação - agora, não daqui a meses. Porque claramente não o é: ainda há muita gente, fora como dentro da profissão, que acha que ser jornalista é ser "imparcial", "não escolher lados" também nisto - como se ser imparcial face ao racismo não fosse ser racista.

O que está aqui em causa não é pois só Hugo Godinho e o seu "preta". É o que raio se pensa que é o jornalismo. O que raio se pensa que é o racismo. O que raio se pensa que é a linguagem. Tudo, portanto.

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