Qual é a sua perceção hoje?

Publicado a
Atualizado a

Não sei como anda o campeonato das palavras que várias editoras promovem nestes finais de ano, mas parece-me que dificilmente outro vocábulo terá argumentos para competir com as “perceções” que dominam o léxico mediático. E que pena não termos já entre nós o cronista brasileiro Nelson Rodrigues (1912-1980), ninguém melhor do que ele iria caricaturar no universo literário este império sensorial que domina a vida pública. 

Mestre em explorar o domínio das perceções, em crónicas ou peças teatrais, ele compreendia e manipulava com maestria a forma como os indivíduos percebiam o mundo e a si próprios, especialmente no contexto das relações humanas e sociais do Brasil da sua época. Craque da hipérbole e da crítica social, percebeu desde cedo, nas crónicas de jogos de futebol, por onde começou a escrita, que a realidade perde sempre para as perceções apaixonadas dos adeptos.

“Se o vídeo diz que foi penálti, pior para o vídeo. O vídeo é burro”, chegou a vociferar, já mais velho e atormentado por problemas de visão, a propósito de uma jogada num clássico FlaxFlu, quando começaram as primeiras transmissões televisivas e repetições de lances  que a sua alma de cronista e (indefetível fluminense) percecionava de forma mais… criativa do que a dos “idiotas da objetividade” (uma das suas expressões célebres).

O futebol sempre foi uma metáfora perfeita para as paixões humanas, mas a política pública arrebata-lhe hoje o primado da irracionalidade. Vemos políticos, de um lado e de outro das bancadas, a defenderem perceções com a mesma fé cega com que o adepto defende o penálti inexistente. O que importa é a narrativa.

O fenómeno não é novo, claro. Já à mulher de César não lhe bastava ser. A propaganda existe desde o início dos tempos e já ajudou a criar alguns regimes bem terríveis, como sabemos. Mas a disrupção trazida pelos novos meios digitais elevou o fenómeno para dimensões que ameaçam redefinir o rumo das democracias a que nos habituámos (os que, felizmente, nos habituámos).

Instrumentalizadas para explorar inseguranças e promover agendas populistas, as perceções são hoje mantra replicado nos manuais ideológicos para político banais. Ao invés de enfrentar os problemas reais, a política torna-se teatral. Mas os factos, esses, não desaparecem por encenação. Por isso, o que se espera de um Governo em era de pós-verdades é que seja capaz de defender a democracia com políticas públicas alicerçadas em dados concretos. Sob pena de transmitir uma perceção errada.

Artigos Relacionados

No stories found.
Diário de Notícias
www.dn.pt