Quadros numa exposição
No fim-de-semana passado, minto, no outro antes desse, fui a Amesterdão ver a exposição de Vermeer ("Vermiir", à inglesa, ou "Vermêêr", à holandesa, ninguém atina na fonia certa).
Uma afirmação deste género comporta, como é evidente, certa dose de pedantismo, na sugestão implícita de que quem a profere faz parte dos happy few muito few que têm recursos, finura e mundo para se deslocarem ao estrangeiro em turismo artístico, só para verem meia-dúzia de quadros, ou que possuem o talento, o engenho e a sorte para conseguir, através da Internet ou doutras candongas, bilhete de ingresso numa das mais aguardadas e procuradas manifestações culturais do ano, patente no Rijksmuseum (ou só "Rijks", para os entendidos), de 10 de Fevereiro a 4 de Junho, com entradas de há muito esgotadas. Quase meio milhão de almas previstas, 450 mil bilhetes vendidos, para sermos precisos (ainda assim, bem longe do milhão de macacos que, em 2019-2020, foram ver Leonardo ao Louvre; cultura, a nova religião laica: em 1975, havia 22 mil museus no mundo, hoje são 95 mil, garante a UNESCO).
É a maior exposição alguma vez feita da obra do pintor de Delft, cobrindo 82% da sua escassa produção artística, ou seja, 28 dos 37 quadros que lhe são atribuídos, expostos com deliberada generosidade de espaço para cada tela poder sobressair como merece (e para que o turistame não se aglomere e violente em excesso), pendurada em paredes de vermelho-escuro mui sóbrio, obra e graça do designer Jean-Michel Wilmotte. Segundo informam os magazines da especialidade, que falam em "the Vermeer show of the century" ou "a chance of a lifetime", os curadores optaram por uma aproximação "menos é mais" (less is more), em que, por um lado, há poucos quadros por sala e, por outro, é escassa e frugal a informação fornecida, sendo também parco e modesto, já agora, o merchandising no final da mostra, só bloquinhos e canetas, pouca tralha. Na primeira sala, as paisagens, com natural destaque para Vista de Delft, 1660-1661, frente à qual Proust terá desmaiado, em êxtase de tanta beleza. A seguir, as obras religiosas e mitológicas, mais importantes do que julgamos, e, logo depois, em crescendo de frisson, habilmente arquitectado, as telas mais afamadas, aí buscadas e vistas num exercício que é muito mais de confirmação e de reconhecimento do que de aprendizagem ou surpresa. Ou seja, e além de dizer que foram à exposição de Amesterdão, o que os visitantes pretendem, antes de mais, é presenciar o déjà vu ao vivo, para que este corrobore ou não as expectativas que tinham - e por isso se precipitam sobre os highlights de cada sala, devidamente assinalados. Simplesmente, Vermeer não só pintou pouco como todos os quadros são premium, sobejamente conhecidos e, como tal, "obrigatórios". Sem lugar a vazios ou espaços mortos, na falta de telas menores, passíveis de observação de relance, a exposição torna-se exigente, talvez cansativa. Informe-se que A Rapariga do Brinco de Pérola, com 44,5 cm x 39 cm, a que agora teimam chamar, num cúmulo de foleirismo, "a Mona Lisa do Norte" ou "Mona Lisa holandesa", só estará patente até 30 de Março, seguindo depois para a Haia.
Para a consumação desta "experiência", pois é disso que se trata, tal qual andar de balão ou saltar de pára-quedas, deve o visitante munir-se do competente bilhete, comprado de preferência online, ao custo de 30euros/ cabeça, se for maior de idade (e sem descontos para "séniores", o novo apodo dos velhos), grátis para os menores de 18 ou para os Amigos do Rijksmuseum, que podem visitar a mostra com privilégios de acesso e horário. O ingresso dá ainda direito a ver o resto do museu e em circunstância alguma pode ser cancelado ou sequer remarcado. Quanto a guias, só cães-guias, autorizados no recinto para companhia de cegos; de resto, não existem áudio-guias ou visitas guiadas e não são permitidos grupos (à excepção de famílias, esclarece o site), nem sequer de escolas, graças a Deus, e não são autorizados cicerones e guias turísticos no interior das salas.
Num exemplar trabalho de relações públicas, a organização foi segregando a espaços, mas com grande antecedência, pontuais comunicados de imprensa, o primeiro dos quais anunciava laconicamente a exposição-bomba para a Primavera de 2023 (press release de 2/12/2021), o segundo dava conta de uma conferência de imprensa do director-geral, Taco Dibbits, sobre as descobertas feitas no restauro de A Leiteira (8/9/2022) e, em cadência acelerada, a 1 de Novembro do ano passado era apresentada a lista das obras em exibição, a 6 de Janeiro dizia-se que a nova biografia do pintor, escrita por Gregor J. M. Weber, um dos dois curadores (que já tinha feito a retrospectiva de Rembrandt e que irá reformar-se depois desta), trazia novas e sensacionais revelações, e, por fim, a 17 de Janeiro o Museu informava que decidira alargar as horas de visita, lançando, do mesmo passo, a Vermeer Digital Experience, com narração de Stephen Fry, em inglês, e Joy Delima, em neerlandês, para os que não pudessem ir ou quisessem saber mais do pintor. A par disso, criaram-se suplementos recreativos como um "Jogo Vermeer" para as crianças, que pode ser solicitado no balcão de informações, workshops de fim-de-semana para famílias com miúdos, "Desenhar como Vermeer", tendo ainda sido feito um documentário sobre a mostra, Dicht bij Vermeer/Close to Vermeer, da realizadora Suzanne Raes, estreado nos cinemas 9 de Março, e um outro do mesmo jaez, Vermeer: The Greatest Exhibition, que estreará nas salas do Reino Unido e da América a 18 de Abril; no resto do mundo, cinco dias depois, a 23. No restaurante do museu, o RIJKS®, a ementa contempla desde 14 de Fevereiro dois pratos "estilo Vermeer", o amuse-bouche Pearl e a sobremesa Milkmaid, em homenagem a dois dos mais conhecidos quadros de um homem falecido jovem, morto nas raias da miséria, cravado de dívidas, com a viúva a ter de despachar dois quadros para saldar o débito de um ano ao padeiro.
Sem contar com os patrocinadores privados (a Philips, que em colaboração com o artista Nick Smith, lançou The Big Picture, uma gigantesca "obra comunitária"; o grupo financeiro ING, com o projecto Friends Meet Again que "conecta música e artes plásticas com o público mais jovem"; a empresa de telecom KPN, o maior sponsor do Rijksmuseum, responsável por Closed to Vermeer, classificada como experiência online; a New Amsterdam Surf Association, uma "marca de streewear para surfistas" que criou um cardigã bordado retratando a leiteira, uma jaqueta azul simbolizando a saia da leiteira e um lenço de seda com a imagem do quadro A Rua Pequena apresentando uma prancha de surf; a Bonne Suits, marca de moda de Amesterdão, que concebeu uma linha de fatos e vestidos inspirados nas cores de Vermeer), sem contar com os patrocinadores privados, dizia, a Holanda inteira mobilizou-se para esta colossal operação cultural, comercial e turística, que compreende ainda em sintonia perfeita uma exposição no Museu Prinsenhof de Delft, terra natal do pintor, sobre a sua relação com a cidade; uma outra na Haia, à Mauritshuis, sobre Jacobus Vrel, precursor de Vermeer; mais outra, no mesmo local, para tapar o buraco aberto pelo empréstimo ao Rijksmuseum, por oito semanas, da Rapariga do Brinco de Pérola (também grafada no Google Translator como Moça do Brinco de Pérola). Intitulada My Girl with a Pearl, nela são expostos os produtos da convocatória feita à escala mundial, para que "as pessoas fizessem arte inspirada naquela pintura icónica". Visões variadas: para os mais democratas, um salutar exercício de abertura ao povo e de autogoverno estético; para os mais snobes, nova tragédia dos comuns, de resultados fatídicos e imprevisíveis, quase sempre kitsch. De lembrar ainda que em Delft há o Vermeer Centrum, quatro andares apertados sem um único quadro genuíno; a Igreja Velha, que o pintor pintou, com uma laje no chão a assinalar a sua sepultura, mais do que duvidosa; e um local chamado "Casa de Vermeer", que vem a ser uma loja de loiças, já que a morada verdadeira está há muito extinta (sobre a sua localização, existe até um livro detectivesco, Vermeer"s Little Street, de Frans Grijzenhout, de 2017). Em Delft há também uma recriação pastiche de A Leiteira, nas traseiras da Igreja Nova, e abundantíssimo comércio versando o pintor, com tudo o que possamos imaginar, de canecas de cerâmica a bolos e chocolates.
Quanto à exposição de Amesterdão, não foi abundante nem frondoso o programa de publicações: além do catálogo de 320 páginas, em versões neerlandesa, inglesa, francesa e alemã, logo esgotado e reimpresso, editaram-se oficialmente a obra de Gregor Weber, atrás citada, e o livrinho para crianças Miffy x Vermeer, da autoria de Irma Boom, que cruza o pintor de Delft com a célebre coelhita branca criada por Dick Bruna em 1955, hoje omnipresente na paisagem urbana neerlandesa, e cujos livros já venderam mais de 100 milhões de cópias (falando em cópias, Bruna jurou até à morte que a nipónica Hello Kitty não passava de uma imitação barata e descaradíssima da sua caçapa branca). Talvez a pobreza calvinista da bibliografia tenha ficado a dever-se à constatação, óbvia e evidente, de que há já muito livro sobre Vermeer (a pesquisa pelo seu nome na Amazon americana devolveu mais de 5 mil entradas bibliográficas) e que as pessoas hoje preferem outro tipo de plataformas, mais digitais e feéricas.
A sofreguidão em ver Vermeer, que esgota 450 mil bilhetes em Amesterdão, não será muito diferente dos sentimentos daqueles que roubaram, mentiram, enganaram, quase mataram, só para o ter. Se não o estimássemos tanto, se não o valorizássemos e o apreciássemos até à loucura, outros não o furtariam, nem sequer o quereriam.
A exposição teve um timing preciso, era agora ou nunca. Explico: o director do Rijksmuseum, Taco Dibbits, teve zunzuns de que a Frick Collection, de Nova Iorque, iria fechar para obras e por isso estaria disposta, par une fois, a emprestar os quadros que lá tem, e que nos últimos 100 anos nunca atravessaram o Atlântico. Foi isso que espoletou ou despoletou esta loucura: juntadas as quatro telas do Rijksmuseum, mais as três da Mauritshuis, foi fácil convencer os restantes emprestadores, num total de 13 instituições de todo o mundo. Estranhamente, há muita transparência quanto à organização e logística, mas pouca ou nenhuma em matéria de finanças: entrevistado pela Bloomberg (8/2/2023), Taco Dibbits falou em despesas de "muitos milhões", devido ao preço dos seguros, mas declinou dizer ao certo quanto custou a coisa no seu todo, ou as receitas previstas.
Para quem lá vai, é difícil não ficar impressionado com a envergadura do happening, mesmo ignorando os detalhes intestinais, aqui sumariamente expostos. Carga que pende muito sobre o visitante, esmagando-o, obrigando-o a estar à altura do momento e do monumento, sobretudo porque associada à consciência de ter despendido 30 euros na entrada, tirando despesas de transporte e de alimentação, e, bem assim, à noção de que muita gente no mundo daria o dobro, o triplo, ou mesmo o décuplo pelo seu lugar (a organização estimou uma afluência potencial de 800 mil espectadores, mas decidiu só vender metade dos bilhetes, cerca de 450 mil).
À chegada, a ordenação dos visitantes é feita através de entrada própria e percurso também próprio, assinalados com uma banda azul-clara colada no chão da rua e do interior do certame, havendo inexoráveis horas de entrada, marcadas no próprio ingresso, sem direito a atraso nem jeitinhos lusitanos. Uma vez lá dentro, inicia-se a experiência, antecedida de dois preliminares essenciais: depósito de casacos e bagagens nos cacifos; ida rápida, com ou sem vontade, às imaculadas instalações sanitárias, onde os estrépitos vindos do interior das cabinas nos arrancam por momentos das alturas da Arte e do Sublime, devolvendo-nos com fragor e estrondo à nossa condição finita, material e terrena, que partilhamos com o pintor de Delft (um parenteses orgânico: se admiramos tanto a delicadeza dos amarelos das pinturas de Vermeer, devemos lembrar que o amarelo-indiano que ele talvez usasse era um pigmento feito a partir da urina das vacas que ingeriam mangas, até ser proibido em 1890, para protecção daqueles animais sagrados).
Apesar dos cuidados da organização, não é possível evitar que em torno de cada quadro se formem compactos molhinhos de carne, pequenos comícios de gente, dez, quinze pessoas de idades e condições variáveis, todas em veneração artística ou orgasmo espiritual. Muitos franceses, também vários espanhóis, poucos ingleses, mais americanos, sobretudo holandeses, claro, quase nenhuns japoneses, menos ainda chineses, ou seja, e em síntese, só povos de Cristo. Apenas por uma vez ouvi um português, dizendo para outro "Isto está tudo na Internet!" ("E dá para ver com mais calma", aquiesceu o colega). Nas salas e nas cafetarias, conspecto geral democrático, sem grandes diferenças de classe, tirando algumas poucas peruas, surgidas geralmente aos pares, cujo cabelo em bola e a magreza de ginásio faziam adivinhar pertença a extractos mais elevados. Pouco ruído ambiente, silêncio quase sacral, gerando-se diante de cada tela o protocolo informal por todos respeitado, nos termos do qual cada espectador aguarda vez pela posição frontal, a mais desejada, aí tem direito a 10, 15 segundos para ver e tirar uma, duas fotos, e depois cede o lugar ao palerma seguinte, sem casos nem sobressaltos.
Numa tentativa de caracterização sociológica, foi possível surpreender as categorias habituais neste tipo de eventos: a) os apontadores, que, através de círculos com o indicador ou o mindinho, assinalam detalhes ou partes dos quadros que toda a gente já estava a ver; b) os explicadores, geralmente franceses, com longos discursos professorais sobre as telas, feitos a partir das legendas que estão ao lado; c) os recolectores, ou orçamentistas, que minoram a despesa da viagem levando para casa tudo quanto possam deitar a mão, sejam fotografias e selfies, sejam folhetos e prospectos grátis, sejam guardanapos de papel (para limpar os óculos), pacotes de açúcar, palhinhas ou colheres de plástico; d) - os místicos, também chamados de empatas ou engarrafadores, postados em adoração diante dos santos óleos, sem perceber, ou fingindo não perceber, que já está uma longa fila à espera, fumegante, prestes a explodir e a partir para a violência; e) as velhas, geralmente três, com uma bichanar ao ouvido da outra e a terceira a ficar danada por julgar que estão a conspirar contra ela; f) - os falsos connoisseurs, que pelo movimento do sobrolho assinalam familiaridade antiga com a obra que observam e comentam; g) os longa manus (ou braço atómico), que invadem sem-cerimónia o nosso campo visual, interpondo entre nós e a tela um membro peludo em cuja extremidade se encontra um telemóvel luminoso já pronto a disparar para a foto; h) os fotógrafos da Mossad, munidos de potentes máquinas, que despejam sobre a tela, durante infindáveis segundos, uma luz avermelhada ou violeta com propriedades radioactivas; i) os documentalistas ou despachados, em versão rally-paper, que se aproximam dos quadros, tiram fotografia, vêem se ficou bem, e partem de imediato para a etapa seguinte; j) os apaixonados, casais jovens e não tão jovens como isso que, no entusiasmo da atmosfera, decidem embrulhar-se reciprocamente diante dos quadros, em demorados beijos franceses, categoria à qual pertence a subespécie dos afagadores, que aproveitam a confusão reinante para acariciar ao de leve o posterior das namoradas; l) as adolescentes enfadadas, em greve auditiva às explicações paternas, mergulhadas no smartphone e a escrever para as amigas "k seca!"; m) os pais com putos, que arrastam os filhos ao colo, em martírio mútuo, ou conduzem carrinhos de bebés high-tech de liga leve, mais valiosos do que os próprios bebés, em statement político-existencial tipo "o facto de ter sido pai há três meses não me vai impedir de ser feliz!" (a criança, claro, vinga-se do patronato, estragando-lhe o fim-de-semana com berraria constante). Menção à parte para os defecadores, homens de meia-idade acometidos por súbita urgência de evacuar antes ou depois da visita, ou durante, pior ainda, deixando a família plantada à espera ao lado de uma tela icónica.
Visitar uma exposição como esta, ou os grandes museus, é sempre uma experiência sensorial extenuante. Enquanto lá estamos, e por estranho maquinismo do cérebro, que ignoro, os sentidos entram em alerta máximo, ficam despertos a toda a potência, estimulados ao rubro, razão pela qual nos incomoda sobremaneira tudo quanto seja dissonante (ex., o movimento inusitado de outro visitante, o odor a lã molhada, uma tonalidade de cor imprevista, a subida ligeira de uns decibéis numa voz alheia) e razão pela qual absorvemos, registando-os, todas as cores, cheiros, ruídos, detalhes minúsculos e insignificantes, até porque, consciente ou inconscientemente, temos noção de estarmos perante uma grande e irrepetível experiência, da qual se não deve perder nada ou pitada. Anotei ao acaso que eram 810 os cacifos ao dispor dos visitantes; que uma ala do Rijskmuseum fora restaurada com patrocínio da Fundação American Express; que na cafetaria vendiam um "Vermeer Smoothie" por 6,75 euros (mas que na ementa existia um "Vermeer Milkshake" a 5,75, mais barato um euro); que na parede da sala dos cacifos estava um QR Code para descarregarmos os textos da exposição em várias línguas; que a lotaria da Holanda, segundo entendi, também patrocinou a mostra; que o quadro de Santa Praxedes, vindo de Tóquio, é propriedade de uma empresa privada, a Kufu Company Inc., cujo objecto social não consegui perceber (a história do quadro é fabulosa: nos anos 60 e 70 ninguém quis comprá-lo, sendo encontrado em 1984, perdido num armazém de Manhattan, por Arthur Wheelock, um dos maiores especialistas em Vermeer, cf. The Washington Post, 20/5/1987). Também vi que, além das actividades atrás descritas, estão previstos podcasts e cursos online sobre Vermeer, workshops de fotografia, conferências e palestras, um simpósio internacional de dois dias (28-29 de Março), programas especiais para cegos, um mundo de realizações, enfim. Também me interessaram as molduras dos quadros, injustamente desprezadas, e ver o modo como estão pendurados, com sólidos arneses, ou coisa que o valha, cravejados nas paredes. Impressionou-me um pouco a aparente falta de segurança, o ar nonchalant dos guardas, as facilidades e as proximidades no acesso aos quadros, isto num museu já escaldado pela vandalização reiterada, em 1911, 1975 e 1990, da sua jóia da coroa, A Ronda da Noite.
Perante tudo isto, que dizer de Vermeer? Os lugares-comuns da praxe sobre a luz inconfundível? Banalidades sobre o silêncio e a "arte da interioridade"? (como as que aqui escrevi há um ano, num texto chamado Vermeer, hoje...). Os especialistas fornecem muitas e muito diversas vias de decifração e acesso: umas baseadas na técnica, centradas nas cores usadas (Jane Jelley, Jonathan Janson), na óptica (Laura Snyder) ou no eventual recurso à camera obscura (Philip Steadman); outras sublinhando os adereços nas telas e a circulação dos bens no comércio oceânico (O Chapéu de Vermeer, de Timothy Brook, um livro extraordinário, por cá publicado pela Gradiva, mas tristemente esquecido) ou os aspectos biográficos (Anthony Bailey); outras que se debruçam sobre as artes da sedução amorosa (Aneta Georgievska-Shine), as mulheres (Marjorie Wieseman) ou a música (também Marjorie Wieseman, Ramón Andrés). Outras ainda, enfim, e só para citar as mais recentes, que exploram a relação de Vermeer com a sua cidade natal (cf. o catálogo da exposição no Prinsenhof) ou que acentuam a importância do contacto com os jesuítas, seus vizinhos em Delft (o citado Gregor Weber). Já houve quem o copiasse ao milímetro, com o auxílio de máquinas e computadores, como o inventor Tim Jenison, dando azo ao documentário Tim"s Vermeer, de 2013, como há quem tenha procurado ou recriado o mobiliário usado nos seus quadros, ou reconstruído à escala natural os cenários das suas telas.
Gosto especialmente das adjacências, que estudam e escrevem não tanto sobre Vermeer, mas sobre o que outros fizeram dele. Dos que o descobriram para nós, com destaque para o jornalista e crítico Théophile Thoré-Bürger, deslumbrado em 1842 pelos quadros de um tal "Van Meer", sobre o qual pouco se sabia e a quem cognominou de "esfinge de Delft". Dos que lhe compraram os quadros, mal sabendo quem ele era, somente porque sim, porque era louvado pelos entendidos, como John Gardner, que em 1892 deu 29 mil florins por uma tela de "van der Meer", O Concerto. Dos que o falsificaram e venderam a peso de oiro, enganando tudo e todos, de Hermann Goering ao governo da Holanda, como o lendário Van Meegeren, responsável por trapaças, imagine-se, no valor de mais de 254 milhões de dólares (sobre ele, um livro apaixonante, The Forger"s Spell, de Edward Dolnick). Dos que abusaram do poder e da força somente para o possuir, como Adolf Hitler, que em 1940 comprou A Arte da Pintura ao conde Jaromir Czernin, em condições desonestas, tela ainda hoje disputada entre a família do conde e o governo austríaco, razão pela qual não viajou agora até à Holanda (obrigado, Pedro Magalhães, pela informação). Dos que o tiveram em casa, em jeito de bibelô de luxo, como Sir Alfred e Lady Beit, mas depois generosamente o ofereceram ao povo, para ser fruído por todos. Dos que o roubaram, vezes sem conta, por razões diversas, todas desprezíveis. Em Abril de 1974, um bando do IRA, a que pertencia Rosa Dugdale, a filha rebelde de um milionário inglês, furtou de Russborough House, a mansão de Sir Alfred Beit na Irlanda, o quadro Senhora Escrevendo uma Carta com a Criada, e mais 19 telas preciosíssimas, de Goya e Gainsborough. A polícia descobriria o quadro, logo no mês de Maio, mas, em 1986, um grupo de malfeitores, liderado por Martin Cahill, "o General", abominável figura do submundo do crime de Dublin, voltou a roubá-lo. Só seria recuperado em 1993, no decurso de uma engenhosa armadilha montada pela polícia no aeroporto de Antuérpia. Rose Dugdale ganhou fama apenas e só por ter roubado um Vermeer, sobre ela se escrevendo dois livros, ambos recentes, The Woman Who Stole Vermeer, de Anthony Amore, de 2020, e Heiress, Rebel, Vigilante, Bomber: The Extraordinary Life of Rose Dugdale, de Sean O"Driscoll, já de 2022, que não li, mas li um outro, fascinante, The Irish Game, de Matthew Hart, que descreve os crimes de 1974 e 1986, explicando-nos por que motivo se roubam tantas obras de arte famosas: é fácil furtá-las, difícil é depois vendê-las; por isso, são usadas como colateral ou garantia em empréstimos de milhões, como sucedeu ao "General", que, a troco de um balúrdio para comprar um carregamento de droga em Marbelha, deu o Vermeer em penhor, a seguir vendeu a droga, pagou a dívida e os juros, e recuperou o Vermeer (num intrincadíssimo esquema, a droga, o dinheiro e os quadros circularam entre 11 destinos: Dublin, Londres, Marbelha, Istambul, Luxemburgo, Frankfurt, Antuérpia, Oslo, ilha de Man, Antígua, Limassol). Talvez isso explique porque é que Pablo Escobar tinha uma bela colecção de impressionistas, como talvez isso explique porque é que os 13 fabulosos quadros roubados em 1990, no dia de São Patrício, do Isabella Stewart Gardner Museum, em Boston, entre os quais O Concerto, de Vermeer (e A Tempestade no Mar da Galileia, de Rembrandt, Deus meu!), nunca mais apareceram: ao contrário das suspeições iniciais, que falavam da venda a um poderoso coleccionador japonês (a Dr. No Theory, como no filme de Bond), os quadros, possivelmente, serviram de moeda de troca em negócios escuros e, se não foram destruídos, estarão, na melhor das hipóteses, num armazém perdido ou num esconderijo de algum mafioso de Boston (há uma bela série da Netflix sobre o caso Isto é um Assalto: o maior roubo de arte do mundo, de 2021).
A sofreguidão em ver Vermeer, que esgota 450 mil bilhetes em Amesterdão, não será muito diferente dos sentimentos daqueles que roubaram, mentiram, enganaram, quase mataram, só para o ter. Se não o estimássemos tanto, se não o valorizássemos e o apreciássemos até à loucura, outros não o furtariam, nem sequer o quereriam. Nos seus quadros, existem o sublime e a graça, a inconcebível luz a brotar dentro das telas, mas também muita miséria, a nossa e a deste mundo. Divino? Não, humano, demasiado humano.
Historiador. Escreve de acordo com a antiga ortografia.