Propostas para a saúde após a pandemia

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“Nós estamos nisto juntos
e vamos ultrapassar isto juntos.” 
António Guterres
Secretário-geral da ONU

Assinalou-se no passado dia 5 de Maio o primeiro aniversário da declaração do fim da pandemia pela Organização Mundial de Saúde. Em pleno século XXI vivemos mais de três anos em pandemia, de 11 de Março de 2020 a 5 de Maio 2023, mais precisamente 1151 dias. 

Em Portugal, mais de metade da população foi infectada, felizmente a grande maioria já após a administração do esquema vacinal primário, mas mesmo assim 26.616 residentes em território nacional perderam a vida. Um número trágico que enlutou demasiadas famílias e que representa cerca de 0,26% da população nacional. A pandemia causou 26.616 óbitos, a par de milhares de internamentos em cuidados intensivos, centenas de milhares de internamentos hospitalares e milhões de infeções. Em sede da capacidade de resposta do Serviço Nacional de Saúde (SNS), os dois piores dias ocorreram a 22 de Janeiro de 2021, com 6869 internamentos hospitalares, cerca de um terço da capacidade total de internamento do SNS, e a 5 de Fevereiro de 2021, com 904 camas ocupadas em Unidades de Cuidados Intensivos. Um valor superior em cerca de 140% à lotação em medicina intensiva prévia à pandemia. Este aumento só foi possível graças à requalificação de muitos espaços e enfermarias tradicionais e recobros pós-operatórios, nos hospitais, foram adaptados em Unidades de Cuidados Intensivos. Por exemplo, enfermarias com 20 camas foram requalificadas em 8 a 10 camas de cuidados intensivos, com o correspondente aumento dos recursos humanos. Em termos oficiais, a lotação total em muitos hospitais reduziu-se para poder acompanhar o acréscimo de gravidade dos doentes internados, a par do aumento da dedicação, das exigências e dos sacrifícios dos profissionais de saúde. Este desvio crítico de recursos da área da saúde teve certamente implicações no seguimento de outras patologias, mas perante os indicadores disponíveis revelou-se indispensável e a melhor opção. 

Não há pandemias sem mudanças e o sector da saúde foi um dos sectores onde mais se fizeram sentir. Destas salientamos as seguintes:

A importância do Serviço Nacional de Saúde

Foi o SNS - sobretudo os seus diligentes profissionais - que esteve na linha de frente do combate à pandemia, desempenhando um papel crucial na atenuação do seu impacto, salvando vidas e mitigando a disrupção social e económica. A resposta não se mediu apenas em volume, mas também na complexidade das intervenções, como, por exemplo, o uso da ECMO (Oxigenação por Membrana Extracorpórea), que dependeu exclusivamente do SNS. A pandemia sublinhou a importância vital de um SNS robusto, diferenciado e universal, sustentado por profissionais de saúde altamente motivados, devidamente reconhecidos e valorizados. Demonstrou, igualmente, a resiliente capacidade do SNS de se adaptar prontamente a desafios contínuos e inéditos.

As mudanças na força de trabalho

Como já foi referido noutros artigos (JAMA Health Forum), o esforço despendido pelos médicos e demais profissionais de saúde teve impacto no seu estado físico e psíquico, nomeadamente na saúde mental. Observou-se um aumento dos indicadores de esgotamento profissional (burnout) e depressão com reformas antecipadas, recusa do trabalho extraordinário, desvinculação e mudança para outras actividades. Torna-se imperativo implementar medidas que reforcem a protecção e valorização dos profissionais de saúde, nomeadamente sob a forma de condições de trabalho, incluindo remunerações adequadas à magnitude das suas responsabilidades e a promoção de um maior equilíbrio entre as esferas pessoal e profissional. A pandemia confirmou que a actividade de rotina em saúde não pode depender do recurso a horas extraordinárias ou de prestadores de serviços.

O desgaste das instituições de saúde pública

A pandemia provocou um grande desgaste nas instituições oficiais e em particular nas da área da saúde pública. Estas instituições, como, por exemplo, a Direção-Geral da Saúde, tiveram uma elevadíssima exposição mediática, acompanharam diariamente a situação epidemiológica, elaboraram orientações e normas e intervieram na fundamentação de inúmeras medidas, algumas com carácter restritivo, tais como os confinamentos, as limitações à circulação, o distanciamento social ou o uso das máscaras faciais. Podemos avaliar agora a pertinência dessas intervenções, que capacitaram adequadamente para enfrentar futuras emergências e cujos benefícios superaram reconhecidamente restrições e adversidades causadas. Tal desgaste pode ter abalado a confiança em instituições vitais para o envolvimento da população e o normal funcionamento do país. É, assim, imprescindível que estas instituições sejam redefinidas estrategicamente e dotadas dos meios e condições para, com urgência, reforçarem as suas capacidades técnica e científica.

Conclusão

Se as pandemias são fenómenos inevitáveis que testam a nossa capacidade de resposta em comunidade, representam igualmente oportunidades únicas de aprendizagem.

Em retrospectiva, a pandemia trouxe à superfície os desafios e a resiliência do sector da saúde, tendo o SNS demonstrado uma notável capacidade de adaptação e de resposta, que, conjuntamente com os seus profissionais, se revelou decisiva no combate e na mitigação dos seus efeitos. 

A experiência adquirida deve ser canalizada para o fortalecimento das instituições e para a implementação de políticas que assegurem não apenas a preparação para futuras crises, mas também o bem-estar e a estabilidade dos profissionais que são a espinha dorsal deste sistema. 

A pandemia redefiniu o panorama da saúde pública, evidenciando a importância de um sistema de saúde pública coeso e preparado. É essencial que o legado deixado por este desafio sem precedentes se traduza, entre outras coisas, numa renovada visão que valorize tanto a capacidade de resposta imediata como a sustentabilidade a longo prazo. 

O investimento em saúde deve ser visto como um pilar para a segurança nacional e a valorização dos profissionais de saúde como um imperativo ético e estratégico. O caminho para uma sociedade mais resiliente e preparada passa inevitavelmente pelo reforço e pela evolução constante do nosso sistema de saúde. Se, como diz Einstein, “a única fonte de conhecimento é a experiência”, agora é o momento de mostrarmos o que aprendemos com a pandemia.

Nota: Os autores não escrevem de acordo com o novo acordo ortográfico.

Filipe Froes é pneumologista, ex-coordenador do Gabinete de Crise para a Covid-19 da Ordem dos Médicos e membro do Conselho Nacional de Saúde Pública.
Patricia Akester é fundadora do GPI/IPO, Gabinete de Jurisconsultoria e Associate de CIPIL, University of Cambridge.

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