Presunção de culpa

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Penso que o eng. José Sócrates sempre disse que queria ser julgado neste processo para provar a sua inocência. Acho que devemos dar essa oportunidade ao eng. José Sócrates para provar a sua inocência”.

Esta declaração do procurador-geral da República, Amadeu Guerra, numa recente entrevista ao Observador, referindo-se ao ex-primeiro-ministro que começará em breve a ser julgado no caso Operação Marquês, deu menos, muitíssimo menos aliás, que falar que o julgamento Joana Marques versus Anjos.

Contudo, se a liberdade de expressão de um humorista pode ser considerada um direito fundamental que se sobrepõe a muitos outros, já a presunção de inocência é um princípio basilar de um Estado de Direito, segundo o qual o ónus da prova cabe sempre à acusação - nunca ao arguido.

A Constituição da República Portuguesa consagra-o de forma inequívoca: “Todo o arguido se presume inocente até ao trânsito em julgado da sentença de condenação.” Isto significa que ninguém pode ser tratado como culpado antes de uma condenação definitiva.

Em complemento, o nosso direito processual penal assegura que cabe inteiramente ao Ministério Público (MP) provar a culpabilidade do acusado, não se admitindo que recaia sobre este o ónus de “provar a sua inocência”.

O arguido tem inclusive direito ao silêncio e a não se auto-incriminar, não podendo tal silêncio ser interpretado em seu prejuízo. Em suma, a lei não impõe ao réu qualquer dever de provar a própria inocência - essa é uma garantia fundamental e inalienável, pedra angular de um julgamento justo.

Mesmo que Amadeu Guerra não tivesse a intenção de subverter o princípio (poderá ter-se expressado mal, querendo talvez dizer que Sócrates terá enfim o seu “dia em tribunal”, como ele próprio alegava desejar), a formulação foi profundamente infeliz.

No seu blogue “Causa Nossa”, o constitucionalista Vital Moreira não dá a Amadeu Guerra o benefício da dúvida. “Infelizmente, não se trata de um lapsus linguae, mas de uma genuína expressão da cultura penal que prevalece no MP quando se trata de acusar políticos, segundo a qual, feita a acusação, é aos próprios arguidos que incumbe provar a sua inocência, assim invertendo o “ónus de prova” e negando o princípio constitucional da presunção de inocência - e o seu corolário, o princípio in dubio pro reo, ou seja, absolvição em caso de dúvida razoável -, que é uma das grandes heranças da revolução constitucional contra o Antigo Regime e o “princípio inquisitorial”, tornando-se um esteio essencial do Estado de direito em matéria penal”, escreveu.

Ao ouvir o Procurador-Geral falar assim, muitos cidadãos podem questionar-se se o guardião da legalidade estará a relativizar um direito humano consagrado desde 1976 na nossa Constituição e desde 1948 na Declaração Universal dos Direitos do Homem. Um Procurador-Geral da República deve ter extremo cuidado com as palavras. Declarações como esta podem minar a confiança pública na justiça.

Volvidos alguns meses desde que assumiu o cargo, Amadeu Guerra tem-se mostrado consciente dos “males” da justiça: denuncia a falta de meios, aponta os processos eternizados, quer agilizar procedimentos e reforçar a eficácia no combate à corrupção.

Tem igualmente procurado passar uma imagem de abertura ao escrutínio e de assunção de responsabilidades - por exemplo, admitindo que o MP pode e deve ser avaliado pelo seu desempenho, tal como os demais pilares do Estado. Essa lucidez discursiva é bem-vinda. Falta passar mais aos atos.

Por exemplo, onde estão os resultados e as responsabilizações da inspeção extraordinária anunciada há seis meses ao DCIAP e DIAP’s Regionais de Lisboa, Porto, Coimbra e Évora, para identificar as causas da morosidade dos apelidados “processos geriáticos”, vários deles titulados por um mesmo procurador? Porque é que, passados 601 dias (à data desta segunda-feira) das buscas da operação Influencer, que resultou na queda de um governo eleito com maioria absoluta, continuamos sem saber qual foi a intervenção do ex-primeiro-ministro António Costa, que um comunicado da PGR disse na altura estar a ser alvo de uma investigação autónoma?

Amadeu Guerra podia ter a mesma pressa, em esclarecer muitos destes processos, como a que parece estar a ter com a Averiguação Preventiva à empresa familiar do primeiro-ministro Luís Montenegro, a Spinumviva. Já deu nota que gostaria que fosse concluída até 15 de julho, mas o pior que lhe poderia acontecer - a ele e à nossa Justiça - era deixar alguma dúvida sobre a seriedade do chefe de governo.

O próprio quererá, com toda a certeza, que não fique uma pedra por levantar e se demonstre que o MP não se rege pelo princípio da presunção da culpa.

Se para conseguir melhores e mais céleres resultados, o MP tem de ter autonomia financeira, Amadeu Guerra já disse que enquanto o MP não tiver controlo direto sobre um orçamento próprio, em vez de depender integralmente das verbas geridas pelo Ministério da Justiça, continuará limitado na capacidade de investir em tecnologia, sistemas de informação e recursos humanos essenciais - que seja. Para que não haja mais desculpas.

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