Preservar o legado de Merkel, abandonar o merkelismo

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No mês em que se assinalam os 20 anos do 11 de Setembro, vivemos mais uma vez um momento determinante para o futuro do Ocidente. Por um lado, as circunstâncias dramáticas da retirada do Afeganistão marcaram simbolicamente o fim da era em que a Europa poderia contar com os Estados Unidos. Por outro, as eleições que decorrem na Alemanha procuram abrir um novo capítulo na política alemã e europeia, depois de 16 anos de liderança de Angela Merkel. A questão de saber se e como Berlim pode ajudar a UE a encontrar o seu caminho no labirinto cada vez mais perigoso da política mundial nunca foi, portanto, tão pertinente.

Um novo inquérito realizado em 12 países membros da UE pelo Conselho Europeu das Relações Externas (ECFR) revela que os europeus tendem a ver a Alemanha como uma força integradora e uma potência pró-europeia merecedora de confiança. O merkelismo, um estilo político baseado no equilíbrio hábil entre vários interesses com vista a encontrar compromissos satisfatórios para todas as partes envolvidas, parece ter sido um sucesso. Questionados sobre quem escolheriam (hipoteticamente) como "presidente da UE", se Merkel ou o presidente francês Emmanuel Macron, maiorias significativas em todos os países inquiridos (incluindo a França) preferiram a chanceler alemã.

A liderança de Merkel reduziu de modo considerável o receio dos países vizinhos relativamente ao predomínio alemão. Atualmente apenas 10% dos europeus percecionam um presidente alemão da Comissão Europeia como uma coisa má. Também um número significativo de europeus confiam em Berlim para liderar a UE, tanto em questões económicas, como em questões relacionadas com a democracia e o Estado de direito
- e isto apesar das críticas de longa data à agenda de austeridade que o país defendeu durante a crise das dívidas soberanas e à sua regra de equilíbrio orçamental. Porém, talvez o ponto mais marcante seja o facto de a Alemanha ser altamente considerada por aqueles que se sentem mais fortemente apegados ao projeto e aos valores europeus.

Contudo, dados os complexos desafios que a Alemanha e o projeto europeu enfrentam, seria certamente insuficiente uma simples continuação do merkelismo para lá de setembro. Este é o paradoxo do legado de Merkel: para cumprir o papel de líder benevolente da UE, Berlim terá de rever os princípios do merkelismo que fizeram que os europeus depositassem as suas esperanças na Alemanha. Para além de manter a UE unida - que constituiu a principal prioridade e realização de Merkel -, a Alemanha terá de liderar a batalha contra as duas ameaças mais perigosas que a UE vai enfrentar nos próximos anos.

A primeira ameaça é a da potencial rutura do Estado de direito. Neste caso, a estratégia de desescalada e de prevenção do conflito seguida por Merkel teve um efeito contrário ao pretendido, dando origem a um impasse entre alguns países membros, como a Hungria e a Polónia, e o resto do bloco. A UE não pode sobreviver sem normas comuns de independência judicial, sem respeito por valores e princípios e sem o reconhecimento do TJUE como árbitro supremo. São precisamente estas regras fundamentais que estão atualmente a ser atacadas em parte da Europa. Na era pós-Merkel, e face aos autocratas, a Alemanha terá de se tornar uma defensora muito mais direta dos valores e dos princípios europeus. Deixou de ser possível satisfazer ambos os lados. E continuar a tentar fazê-lo poria em risco o próprio projeto europeu.

A segunda ameaça é a da marginalização geopolítica da UE. Em muitos aspetos, o merkelismo só foi possível devido à liderança norte-americana do mundo ocidental e à ordem multilateral baseada em regras comuns. No entanto, com o mundo a entrar numa "era sem paz", esta ordem está a enfraquecer rapidamente, e a partida de Merkel é suscetível de acelerar mudanças no seio da aliança ocidental. Durante grande parte da era Merkel, parecia que a UE tinha tirado férias geopolíticas e externalizado a sua responsabilidade para com o seu parceiro transatlântico. No novo mundo, essa opção deixou de existir. A Europa precisa de liderança, especialmente porque a sua agenda está a ser cada vez mais moldada por fatores externos, como as alterações climáticas, a competição tecnológica, a segurança e a migração.

Para a Alemanha pós-Merkel conseguir assumir esta tarefa e impulsionar o projeto europeu, terá de abandonar a sua zona de conforto e aventurar-se em áreas em que nos últimos 16 anos não quis nem se sentiu à vontade para liderar. Terá de apresentar aos seus parceiros europeus ideias claras sobre o papel e as posições da UE num mundo cada vez mais competitivo. O novo governo alemão em Berlim terá de demonstrar mais claramente do que nunca que está a agir a partir de uma posição europeia, e não sobretudo alemã, nas suas relações com a China e a Rússia. E terá de encontrar uma forma de equilibrar o balanço de poder nos compromissos transatlânticos, para que os europeus se sintam mais seguros e bem representados no mundo. Esta seria a melhor forma de assegurar que o legado de Merkel pode perdurar para além do merkelismo.

Chefe do ECFR em Varsóvia

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