Precisamos de ver cadáveres na televisão?

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As imagens e testemunhos da invasão russa na Ucrânia entram-nos pela casa adentro todos os dias, a todas as horas e em todos os canais de informação. É fundamental informar, esclarecer e sensibilizar, é certo. Mas precisamos de ver cadáveres na televisão? Que impacto pode ter esta sobre-exposição a imagens de guerra chocantes e potencialmente traumáticas?

Dar notícias sobre a guerra não é fácil. Porque se, por um lado, é importante que todos tenhamos acesso à informação, por outro é igualmente importante que essa mesma informação seja objetiva, rigorosa e não-sensacionalista. Assim, qual o potencial impacto de sermos expostos repetidamente a imagens fortes de tamanha agressividade?

Citaçãocitacao"Terão elas [as crianças] os mesmos recursos e ferramentas para gerir as emoções e lidar com esta situação? Claro que não."esquerda

Talvez possamos começar pelo conceito de vitimização vicariante, que diz respeito a uma forma mais indireta ou secundária de vitimização - ou seja, a pessoa não é vítima direta de violência (seja ela física, psicológica, sexual ou outra), mas assiste ou presencia essa mesma violência junto de outros. E o que sabemos sobre este fenómeno? Sabemos que tem um forte impacto negativo no bem-estar de quem o experiencia, potenciando sentimentos de insegurança e de medo e aumentando a sensação de vulnerabilidade e de imprevisibilidade. Falamos, assim, de pessoas que, não sendo vítimas diretas da guerra, podem experienciar alterações emocionais ou de comportamento muito significativas, com quadros ansiosos ou depressivos, reações agudas de stress ou outras.

Temos ainda de pensar que, muitas vezes, temos as crianças na sala ou na cozinha a assistirem a este tipo de notícias. E terão elas os mesmos recursos e ferramentas para gerir as emoções e lidar com esta situação? Claro que não.

Por outro lado, corremos um risco muito preocupante - o risco da habituação. O que significa que, quando expostos de forma repetida a determinados estímulos, por mais dissonantes e perturbadores que possam ser, corre-se o risco de ocorrer um processo de dessensibilização. E aquilo que, numa fase inicial, nos fazia experienciar emoções muito intensas e chorar, por exemplo, acaba progressivamente por tornar-se algo mais neutro e menos impressionante.

Queremos isto? Queremos que as imagens e notícias da guerra ativem medo, ansiedade e reações de stress ou, pelo contrário, que nos façam sentir anestesiados e adormecidos face ao sofrimento alheio?

Não queremos uma coisa nem outra.

Neste contexto, importa sensibilizar os órgãos de comunicação social para alguns aspetos devidamente sistematizados no recente documento da Ordem dos Psicólogos Portugueses (https://www.ordemdospsicologos.pt/ficheiros/documentos/opp_darnoticiassobreaguerra_v1.pdf) que salienta as boas práticas que devem ser seguidas. É necessário informar de forma clara, equilibrada e precisa, com uma linguagem imparcial e procurando humanizar todos os envolvidos, evitando a dicotomia "bons" e maus", salientando o impacto menos visível da violência e protegendo os mais novos de determinadas imagens.

Psicóloga clínica e forense, terapeuta familiar e de casal

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