Precisamos da lucidez de Amílcar Cabral

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Foi há 100 anos que nasceu um dos maiores heróis da liberdade. A sua ideia não era inovadora, mas a sua dedicação tornou-o no “pai” da independência de Cabo Verde e da Guiné-Bissau.

As colónias portuguesas estavam em guerra com o colonizador desde 1961, e o fundador do Partido Africano para a Independência da Guiné e Cabo Verde (PAIGC) era um dos principais líderes do movimento. Amílcar Cabral tinha a lucidez que hoje em dia escasseia, seja no discurso de alguns protagonistas políticos ou no debate público-digital em sociedade. Dizia: “Nós nunca confundimos o ‘colonialismo português’ com o ‘povo de Portugal’, e temos feito tudo para preservar, apesar dos crimes cometidos pelos colonialistas portugueses, as possibilidades de uma cooperação eficaz com o povo de Portugal, numa base de independência, de igualdade de direitos e de reciprocidade de vantagens seja para o progresso da nossa terra, seja para o progresso do povo português. O povo português está submetido há cerca de meio século a um regime que, pelas suas características, não pode ser deixado de ser chamado fascista. A nossa luta é contra o colonialismo português.”

Amílcar Cabral sabia separar o sistema da base, atentava ao contexto, tinha uma visão estruturada da dominação colonial, do dominador e dos outros dominados por outras opressões. O seu foco era claro, sem dispersões. A confusão de problemas e culpados é precisamente uma das raízes mais fortes a manter o racismo vivo.

Sempre que um caso de violência racista é noticiado, e que se relembra que existe muito racismo em Portugal, surge sempre quem queira resumir esta assunção a uma culpabilização geral dos portugueses, e que garanta que nomear um problema num país é antagonizar todos os seus habitantes.

Cheira a populismo, pois claro, ótimo para dividir a população, para que reinem aqueles que se deleitam a pôr uns contra os outros. Entretanto, os problemas continuam e sacodem-se responsabilidades.

Dizer que Portugal tem uma estrutura racista é constatar o impacto do passado que nos trouxe até aqui (do qual não somos responsáveis diretos, é certo, mas com o qual beneficiámos através dos privilégios herdados por gerações anteriores à nossa). É estar atento à diversidade não-existente na política (daí que, quando existe uma pessoa negra a ocupar um lugar, seja usado como bandeira ou como destaque noticioso), na academia, na medicina e em outras profissões liberais. É observar as áreas em que há mais pessoas negras presentes - são elas que limpam os nossos escritórios, as nossas casas, as casas de banho de espaços públicos.

Consigo ouvir alguém responder: “Mas também há pessoas brancas!”. Há, claro. Mas a diversidade cinge-se a áreas específicas, ao passo que noutras o quadro é praticamente branco.

Precisamos de lucidez e de clareza para atacar um problema que não ficou resolvido nem com Cabral, nem depois dele. Mas para isso precisamos também de um pouco da sua coragem e de muita da sua vontade. Será que a temos?

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