Práticas culturais

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Elias Canetti, prémio Nobel da Literatura de 1981, conta na sua autobiografia, A Língua Posta a Salvo, que, na sua infância, a mãe viúva deixou de ter tempo para o que chamava de "leituras vespertinas", o contar de histórias que deleitavam os filhos. As crianças sentiram a falta, mas encontraram o modo de continuar o fantástico prazer de ler, com menos ajuda da mãe. A leitura tornou-se um vício naquela família sefardita, que usava no dia-a-dia o ladino antigo, recordação das origens ibéricas. A mãe dizia: "Método, meninos!" E repetia-o tantas vezes que os pequenos achavam graça e repetiam a palavra em coro e em tom de mofa. Mas insistia: "Vocês vão acabar por ver depois, pela vida fora, que sem método não se consegue nada." E Canetti concluía: "A palavra estimulava-a, tinha para tudo uma palavra, e se calhar foi isto que constituiu no fundo o esplendor desta vida em comum, o facto de se ter falado sobre tudo."

Lembrei-me do episódio perante os resultados do inquérito sobre as práticas culturais dos portugueses, coordenado por José Machado Pais, Pedro Magalhães e Miguel Lobo Antunes, realizado pelo Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa, com o apoio da Fundação Gulbenkian. Trata-se de um levantamento pioneiro realizado à escala nacional sobre como os portugueses encaram as iniciativas culturais e o fenómeno cultural, considerando a democratização do acesso, a participação, a divulgação do livro e das manifestações culturais, os programas itinerantes, a descentralização e a animação, a criação de públicos, a promoção das artes, o desenvolvimento das atividades criativas. Era o inquérito que faltava e merece leitura, estudo e ponderação atentos. Temos de conhecer a nossa realidade, comparando-a com a de outros, para delinear políticas públicas coerentes e integradas, capazes de articular as práticas culturais com a vida económica e social e o desenvolvimento. Mais do que insistir no diagnóstico sombrio, que deve ser visto considerando o longo caminho que tivemos de trilhar, desde ter um quarto da população analfabeta no início do último quartel do século XX até às formações baixas da população ativa e aos elevados níveis de insucesso e abandono escolares, só recentemente contrariados, graças à escolarização. E se a pandemia atingiu seriamente a atividade cultural e os seus profissionais, importa levar a sério este inquérito, com tudo o que apresenta e com os seus desafios. Daí a exigência no tocante às políticas públicas e às responsabilidades da sociedade civil e da iniciativa económica. Há que tirar consequências e que prosseguir no método, como insistia a mãe de Canetti.

De facto, os resultados revelam: que apenas 39% dos inquiridos afirmam terem lido ao menos um livro no ano anterior; 61% dizem que nem um livro leram; 72% que não visitaram um museu; 31% foram pelo menos uma vez a um monumento; 41% foram uma vez ao cinema; apenas 5% viram pelo menos um espetáculo de ballet; 6% um de dança; 6% um concerto de música clássica; 13% um espetáculo de teatro; 24% música ao vivo; e 38% foram a uma festa local ou a um festival. Esta é a realidade. Dela temos de partir. São indicadores difíceis que se projetam na educação, na ciência e na economia. Cabe-nos tirar consequências.

Administrador executivo da Fundação Calouste Gulbenkian

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