Português versus Kônkânnií em Goa?
É sabido que no campo da linguística, da galeria dos mais ilustres goeses falecidos, destaca-se a figura ímpar do lexicólogo, Sebastião Rodolfo Dalgado, professor de língua e literatura sânscrita na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, que dedicou grande parte da sua vida ao estudo de várias línguas, em especial a indo-ariana kônkânnií, sua língua materna, a que os primeiros portugueses chamavam canarim.
Apesar de todas as vicissitudes por que tem passado, e continua a passar ao longo dos séculos, o kônkânnií continua a ser um dos marcos identitários mais relevantes da identidade goesa, vindo a ser reconhecida como língua oficial do Estado de Goa apenas a partir de 20 de Agosto de 1992, ou seja, contra todas as legítimas aspirações e espectativas dos goeses praticantes da sua língua materna, somente mais de três décadas após o termo da soberania portuguesa no antigo Estado Português da Índia.
Afonso de Albuquerque, conquistador de Goa em 25 de Novembro de 1510, desde a primeira hora teve a nítida consciência de que a difusão da língua portuguesa, naquele território, era fundamental para a consolidação do seu domínio.
Com intenção de concretizar esse objectivo e dar corpo ao seu genial sonho de miscigenar conquistadores e conquistados, para além de casamentos mistos, realizados com o seu apadrinhamento, também deu os primeiros passos para a divulgação do português no Oriente, encarregando um casado de ensinar cerca de cem nativos a ler e a escrever português.
Orgulhoso com os resultados alcançados comunicou, cheio de alegria, ao rei D. Manuel I que os jovens goeses eram argutos e aprendiam rapidamente.
Todavia, conseguir que os naturais abandonassem a sua língua materna e abraçassem a portuguesa era uma tarefa ciclópica que não estava ao alcance do reduzido número de conquistadores, por falta de meios técnicos, por relutância de uma parte dos próprios portugueses invejosos, conhecidos como opositores aos seus planos e, principalmente, porque o kônkânnií, tanto falado como escrito, é um idioma rico e completo, com uma gramática bem articulada e capaz de lidar com todo o tipo de matérias, segundo os seus especialistas.
Para agravar ainda mais esta situação, como factor de acrescida dificuldade para os interesses portugueses, verificava-se que a linguagem nativa estava profundamente enraizada na população, tornando a tarefa de substituição de kônkânií por português extremamente difícil.
Cento e setenta e quatro anos depois da conquista, como Portugal se via carenciado de recursos humanos "para o meneio das armas e defensa destas terras" (Alvará de 27 de Junho de 1684, in Joaquim Heliodoro da Cunha Rivara, Ensaio Historico da Língua Concani, Nova-Goa, Imprensa Nacional, 1858, p. 256), e como a política de casamentos mistos, iniciada por Afonso de Albuquerque, havia deixado de ter prosseguimento adequado, "por ommissão dos que governarão" (Idem) e consequente prejuízo para a boa governação portuguesa, D. Francisco de Távora, conde de Alvor, vice-rei e capitão geral da Índia, pelo citado alvará, decidiu reactivar aquele processo de miscigenação escolhendo as mulheres que se enviuvavam para casarem com os metropolitanos, porque muitas delas, mesmo sendo extremamente novas, mantinham-se naquele estado devido à tradição e forte pressão familiar.
Contudo, na sua ingenuidade, chegou a ponto de acreditar que poderia obrigar todos os goeses e de todas as castas, a abandonar a sua língua materna e aderir em massa à língua portuguesa, através de simples legislação e independentemente da sua vontade, - "não sendo menos conveniente que os naturaes dellas deponhão o uso do idioma natural, e se appliquem todos a fallar a lingua Portugueza, com que cessarão os inconvenientes, que se considerão de estarem no mesmo tempo fallando a lingua materna e a Portugueza para não serem entendidos; alem de ser assim mais conveniente para melhor os Parochos os dotrinarem e instruirem nos misterios da fee" (Idem, pp. 256-257) -, através de ameaças e de punições severas e permanentes "sob pena de perdimento de seus bens pera a Coroa, e de serem privados ipso facto de toda a honra e preeminencia de suas gancarias, pera em nenhum tempo serem mais admittidos a elles" (Idem, 257).
D. Francisco de Távora convenceu-se também que alcançaria esse desiderato em apenas três anos: "para este effeito em todas as praticas e congressos, que tiverem usarão da Lingua Portugueza até se fazerem correntes nella, para o que lhes assigno tres anos de tempo, dentro dos quaes fallarão todos geralmente no idioma Portuguez, e della usarão somente em
seus tratos e contratos que fizerem em nossas terras, e de nenhum modo da lingua da terra, sob pena de se proceder contra elles com a demonstração e severidade de castigo que parecer" (Idem, p. 258).
Esta determinação absurda e insensata não só não foi cumprida, como era previsível, como ainda foi seguida de uma outra, em 1745, do Arcebispo D. Fr. Lourenço de Santa Maria de Melo que teve a disparatada ideia de querer impedir a celebração do casamento a quem não soubesse a língua portuguesa, dando o prazo de seis meses aos brâmanes e chardós para a aprenderem e de um ano às outras castas (in António de Noronha, Os Indus de Goa e a República Portuguesa, Nova Goa, Imprensa Nacional, 1922, p. 79). Verificando ser tão ineficaz como havia sido o alvará do vice-rei D. Francisco de Távora, depressa teve que revogar a sua deliberação.
Na realidade, ao longo dos séculos, a muitos governantes portugueses e às autoridades religiosas, aquilo que sobrou na vã habilidade da imposição de mudanças inexecutáveis, sob ameaças de penas desmesuradas, faltou na determinação e capacidade de execução.
Embora nunca tenha havido uma política educativa assertiva do ensino de português a todos os goeses e apesar dos esforços desenvolvidos por alguns dirigentes, principalmente depois da década de cinquenta do século passado, em especial, pelo último Governador-geral, general Manuel Vassalo e Silva, o português falado, sobretudo por elites urbanas, não conseguiu penetrar nas aldeias e povoações dispersas a não ser pela rama.
Em 18 de Dezembro de 1961, vencidos os antigos conquistadores por força das armas da União Indiana, todos os sinais da presença portuguesa em Goa, designadamente a língua, passaram a representar um sério obstáculo para a rápida assimilação e integração dos goeses na nova ordem estabelecida, daí que a primeira reacção do novo poder instituído e, em especial, a dos freedom figters tenha sido a de implementar medidas com vista a tentar apagar as marcas da presença dos colonizadores.
Indiferente a estas pretensões políticas, progressivamente, a bússola da economia descobriu novos caminhos e a indústria do turismo ganhou pujança, tornando-se um dos factores mais importantes para o desenvolvimento de Goa.
A visita de estrangeiros e de milhares de turistas do resto da Índia, que procuram, sobretudo, os propalados vestígios da presença portuguesa em
Goa, disferiu um rude golpe nos anseios daqueles que pretendiam ver evaporados os testemunhos da história de Portugal naquela terra oriental.
Com o restabelecimento de relações diplomáticas entre Portugal e a Índia, a troca de visitas dos respectivos primeiros-ministros e a presença do presidente da República Portuguesa em Goa, a janela de novas oportunidades está a ser muito bem aproveitada pela Índia, agora que tem uma economia pujante, em permanente expansão, e precisa de encontrar novas praças comerciais.
Desta maneira, por força da alteração das circunstâncias políticas e geoeconómicas, o português deixou de ser um obstáculo para passar a ser uma necessidade, pois os dirigentes indianos inferiram que, para dinamizar e expandir os negócios com Portugal e o Brasil e lançar novas pontes nos mercados emergentes de Angola, Moçambique e de outros países de língua oficial portuguesa, quem dominasse a língua de Camões ficava com caminho aberto para efectivação de negócios naqueles Estados. Por isso, não é de admirar que a promoção da língua portuguesa em Goa seja uma realidade e a juventude goesa queira aprender aquele idioma, pois sabe que, com acréscimo dessa língua, pode singrar em vários países do mundo.
Em pouco mais de sessenta anos, com a dinamização da economia goesa, a sua população mais do que duplicou, com base na invasão pacífica e descontrolada da população do resto da Índia à procura do apregoado eldorado.
Hoje, o originário de Goa, sente nostalgia e profunda tristeza quando se dirige em kônkânnií a muitos transeuntes, lojistas e empregados da mesa, e eles o olham com ar de espanto, não fazendo a mínima ideia da língua do interlocutor.
Se ainda existem puristas em Goa que falam kônkânnií, inglês, marata, hindi, português ou guzarate sem se apoiarem em outras línguas, na conversação rotineira, é frequente misturarem-se estas línguas correntes e procurarem-se nelas os vocábulos mais adequados para exprimir o pensamento momentâneo.
É mais uma autêntica sinfonia de línguas que domina o linguajar goês do que uma língua em exclusivo, em especial, nos centros urbanos e suas periferias.
Em relação à língua lusitana, penso que eu, como outros defensores da língua kônkânnií, podemos estar descansados, porque se o português não conseguiu impor-se durante mais de quatrocentos e cinquenta anos do seu domínio em Goa, não será agora que, com o seu ensino em algumas universidades e em poucas escolas públicas e privadas, vai fazer sombra ao kônkânnií.
No mundo globalizado em que vivemos, ser poliglota só traz vantagens e não prejuízos. O português pode e deve ser cultivado em Goa, nunca contra o kônkânnií mas apesar do kônkânnií, porque ambas fazem parte da identidade goesa, evidentemente, com preeminência abissal de kônkânnií.
Historiador