Portugal e Brasil, uma relação com passado, presente e futuro
Há uma frase icónica sobre o Brasil, cuja autoria é atribuída ao então Ministro da Economia do Governo de Fernando Henrique Cardoso: "no Brasil, até o passado é incerto." Esta frase consolidou-se como uma frase antológica para caracterizar a permanente instabilidade do gigante sul-americano, e diz-se que na sua origem está uma constatação, da equipa de Pedro Malan, de que as contas do Estado estavam todas erradas e, por décadas, haviam sido mal feitas.
Verdadeira ou não, esta frase não se aplica ao relacionamento entre Portugal e o Brasil. Entre os nossos países, não só o passado não é incerto como é justamente esse passado que tem construído e solidificado, ao longo dos anos, um relacionamento singular e de densidade incomparável com qualquer outro que Portugal mantém com países estrangeiros.
Temos à nossa frente uma oportunidade única para celebrarmos o passado, festejarmos o presente e projetarmos o futuro desta relação. No passado dia 7 de Setembro teve início o 200º aniversário da declaração de independência do Brasil, tão retratada no famoso grito do Ipiranga, que tornou o Brasil independente de Portugal. Essa foi uma independência de características muito especiais que não só não inviabilizou Portugal como viabilizou um Brasil unido e poderoso, que contrasta com os seus vizinhos na língua e na dimensão.
A festa do bicentenário será, e assim deve ser, antes de mais uma festa brasileira. Os vínculos especialíssimos que unem o Brasil a Portugal levaram o Brasil a convidar o nosso país a associar-se às comemorações. Fá-lo-emos com muito gosto. As celebrações serão muitas e diversas. E envolverão instituições como esta Universidade onde tenho o prazer de estar a falar-vos hoje.
Vamos certamente no próximo ano honrar o nosso passado comum, e ao fazê-lo teremos uma oportunidade de ouro para celebrar o presente e projetar o futuro.
Portugal e o Brasil, como o mundo, mudaram muito em 200 anos. Monarquias transformaram-se em repúblicas, as distâncias ficaram mais pequenas, a democracia chegou.
Pode dizer-se que, com altos e baixos, equívocos e esclarecimentos, arrufos e namoros, a nossa relação nunca perdeu o fio condutor que tece cumplicidades e serve de âncora para cimentar o presente e garantir o futuro.
Devemos dar o devido desconto às muitas frases feitas de um e outro lado do Atlântico, que foram sendo alimentadas ao longo dos tempos e à medida dos momentos mais ou menos bons que um e outro dos dois países atravessavam.
A verdade é que jamais, nem mesmo nos momentos menos iluminados, a relação se degradou a ponto de fazer perigar a estrutura que nos liga. Porque no fundo as pessoas é que contam, e as pessoas nunca se voltaram as costas.
Senhoras e senhores,
Em que estado se encontra a nossa relação no presente?
O ano que estamos a viver, ainda infelizmente atípico mas já a caminho da normalização que tanto nos faz falta, está a ser um ano de uma pujança assinalável para as relações entre Portugal e o Brasil.
Assim que Portugal aliviou as restrições à entrada de brasileiros no país, assistimos a uma verdadeira corrida aos bilhetes de avião. Nos primeiros 27 dias de Setembro entraram em Portugal mais de 120 000 brasileiros. Independentemente destes números impressionantes, que refletirão sobretudo entradas de turistas e estudantes, a comunidade brasileira em Portugal é hoje já a maior comunidade estrangeira residente em Portugal.
Quanto ao Brasil, ali vivem e trabalham cerca de um milhão e meio de portugueses, descendentes e bi-nacionais. As alterações recentes à Lei que permite a aquisição da nacionalidade portuguesa, flexibilizando-a, fizeram disparar os pedidos de nacionalidade por parte de cidadãos brasileiros.
Nos últimos meses, multiplicaram-se idas e vindas institucionais entre os dois países.
O momento mais alto foi a visita do Presidente da República de Portugal ao Brasil em finais de Julho, acompanhado pelo Ministro de Estado e dos Negócios Estrangeiros, onde assistiu à reinauguração do Museu da Língua Portuguesa em São Paulo e se reuniu com o atual e três ex-Presidentes do Brasil.
E outros membros dos dois Governos cruzaram o Atlântico. Do lado brasileiro, os Ministros das Relações Exteriores, da Agricultura e da Ciência e Tecnologia. Do lado português, os Secretários de Estado da Internacionalização, das Comunidades Portuguesas e Adjunto e da Saúde.
Antes que o ano acabe, deverão visitar Portugal os Ministros da Saúde e do Desenvolvimento Regional do Brasil, além de vários outros representantes das Instituições brasileiras, como o Senado e a Câmara dos Deputados.
Não é coisa pouca.
Mas nem é, arrisco dizê-lo, o mais relevante.
Porquê?
Porque os elos entre as pessoas estão cada vez mais fortes, em tantas áreas, das quais trago aqui alguns exemplos.
Já falei das viagens turísticas e da força das duas Comunidades, não repetirei a importância que têm para o relacionamento presente.
Unem-nos a cultura e a língua. Existirão, no final deste ano, oito Cátedras do Instituto Camões no Brasil. De Norte a sul, pois pela primeira vez será criada uma Cátedra Camões na universidade federal do Paraná. As Cátedras Camões constituem um instrumento relevantíssimo para o trabalho de pesquisa e investigação sobre temas passados e atuais relacionados com Portugal, Brasil, e a África de língua portuguesa.
Estaremos juntos em duas celebrações culturais e científicas, que atravessam o próximo ano: o centenário do nascimento de José Saramago, até hoje o único prémio nobel da literatura de língua portuguesa, e o centenário da primeira travessia aérea do Atlântico Sul por Gago Coutinho e Sacadura Cabral.
Une-nos a paixão pelo futebol. Temos duas das melhores seleções do Mundo, o Brasil com mais historial, mas Portugal a ganhar terreno mais recentemente. Centenas, talvez milhares, de jogadores brasileiros encontraram em Portugal o país da sua projeção, e alguns uma montra que os levou à fama internacional. Nos últimos anos, em especial, dois treinadores portugueses tiveram sucesso no Brasil. Jorge Jesus no Flamengo e Abel Ferreira no Palmeiras já levantaram a Taça dos Libertadores da América, o equivalente à Champions europeia no continente sul-americano. E ninguém esquece o sucesso que foi a passagem de Felipe Scolari pela nossa seleção principal, que nos levou pela primeira vez à final de um Euro.
Une-nos o gosto por comer e beber bem. É unânime a apreciação dos brasileiros pela gastronomia portuguesa, incluindo os nossos vinhos e azeites. Este ano aconteceu o que se julgava impossível há anos atrás: Portugal ultrapassou a Argentina nas exportações de vinho para o Brasil, sendo hoje apenas superado nesse capítulo pelo Chile.
Descobrimo-nos cada vez mais na área económica e empresarial. A existência de 18 Câmaras de Comércio portuguesas no Brasil, coordenadas por uma Federação, é fundamental para aumentar a nossa capilaridade no país, para ganharmos escala, e para darmos a conhecer Portugal aos diversos Brasis, os 27 estados que compõem o Brasil de dimensão continental.
Cada estado é uma realidade diferente.
Fala-se muito de São Paulo, também do Rio de Janeiro. E bem. Mas estados como Minas Gerais ou a Baía têm mais população que Portugal inteiro, um mercado muito aberto ao nosso país e imensas oportunidades. Um estado como o Espírito Santo, a sul do Rio de Janeiro, tem o fornecimento de eletricidade a mais de 70 municípios nas mãos da EDP. E por ai vai, como dizem no Brasil. 27 estados são 27 realidades.
Noutras áreas, como a educação, agricultura, ciência e tecnologia ou defesa, a cooperação cresce a cada dia que passa. Projetos interessantíssimos e estruturais nascem entre instituições públicas ou privadas,
A parceria entre e Embraer e a Ogma dá frutos através, por exemplo, da construção de peças do avião de transporte e carga chamado KC 390. Há dias tive o privilégio de testemunhar o primeiro voo de uma tripulação da nossa Força Aérea nesse moderníssimo avião brasileiro.
As Universidades constituem parcerias e intercambiam estudantes e investigadores a um ritmo sustentado e cada vez maior. Não há Universidade brasileira onde eu vá que não me refira cooperação em curso ou vontade de cooperar com Universidades portuguesas. Esta prestigiada Universidade de Coimbra é um exemplo. Raro é o brasileiro com quem falo, sobretudo da área jurídica, que não me diz quase de imediato: "estudar em Portugal, ah, estudar em Portugal é Coimbra", ou "estudei em Coimbra e quero que o meu filho ou filha vá estudar lá também".
Senhoras e Senhores,
E o futuro? Esta relação entre Portugal e o Brasil tem futuro?
A resposta só pode ser um entusiástico e enfático sim.
O que semeamos dá frutos, e as áreas que referi atrás, entre outras, garantem um futuro robusto ao nosso relacionamento bilateral.
Quero falar-vos agora de uma área a que auguramos um futuro particularmente significativo.
A área da saúde.
Há exatamente duas semanas, em Brasília, na presença de membros dos Governos de Portugal e do Brasil, nasceu a marca Portugal saúde no Brasil.
O que quer isto dizer?
Basicamente, colocar em rede um conjunto de Instituições de matriz portuguesa na área da saúde criadas no Brasil há mais de cem anos, o Governo português nas áreas dos Negócios Estrangeiros e da Saúde, e a Santa Casa da Misericórdia de Lisboa.
Uma rede com um potencial enorme para crescer e prosperar, onde queremos valorizar o trabalho das instituições centenárias que no Brasil desempenham um papel de primeira grandeza na assistência às nossas comunidades e a todos quantos procuram os seus serviços.
Fortalecendo os laços na área da saúde, unindo esforços entre Governos, instituições conhecidas e reconhecidas na área da assistência social como é a Santa Casa da Misericórdia de Lisboa e os hospitais beneficentes de matriz portuguesa no Brasil, estaremos a prestar um serviço inestimável às nossas comunidades e também a facilitar mecanismos de cooperação entre instituições públicas e privadas, e a dar às nossas empresas da área da saúde possibilidades de negócio parte significativa da rede hospitalar brasileira.
Não posso encontrar, neste momento em que tanto se fala da cooperação internacional na saúde, a chamada diplomacia da saúde, melhor exemplo para ilustrar o futuro da relação entre Portugal e o Brasil.
Caros estudantes,
Termino voltando a Coimbra, a esta universidade cuja colaboração com o Brasil tem passado, presente e futuro. José Bonifácio foi aqui lente. A universidade de Coimbra foi de grande relevância na formação da elite que levou o Brasil à independência.
No presente, que melhor exemplo do que a doação da universidade ao museu nacional do Brasil, momento feliz a que assistimos hoje, sendo a primeira instituição portuguesa a doar peças para a reconstituição desse museu admiravelmente dirigido pelo Professor Alexander Kellner?
Com um passado e um presente desta envergadura, o futuro está garantido.
Saibam as instituições dos dois países estar à altura da formidável vontade das pessoas que de Fortaleza a Sines, do Rio de Janeiro a Lisboa ou de Minas Gerais a Braga, cada vez mais cruzam a ponte que une os dois lados do Atlântico e, poliglotas na mesma língua, tornam todos os dias mais fortes e inquebrantáveis os laços que nos unem.
Muito obrigado.
Embaixador de Portugal no Brasil
Texto da palestra a 29 de outubro na Universidade de Coimbra