Porque não vai o Papa a Kiev? O terceiro segredo de Fátima explica

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Inesperadamente, as imagens da chegada da Nossa Senhora de Fátima Peregrina a Lviv voltam a colocar as chamadas aparições na Cova da Iria em 1917 entre as evocações que resultam da invasão da Ucrânia pela Rússia. Reportagens com a Imagem Peregrina percorreram o mundo nos últimos dias e, por exemplo, os canais norte-americanos CNN e Fox News deram-lhe uma visibilidade pouco habitual e trouxeram de volta os segredos de Fátima perante o cenário de uma guerra devastadora. Não será por acaso, afinal o Segundo Segredo de Fátima refere-se à Rússia e este conflito mundial faz com que a narrativa de Lúcia seja lida de uma forma atualizada, como nunca seria imaginável há um mês.

Diga-se que Fátima esteve sempre envolta em guerra; a primeira vez que os três pastorinhos dizem ter visto a N. Sra. foi a 13 de maio de 1917, em plena Grande Guerra - com o Corpo Expedicionário Português na frente de combate; logo após a II Guerra Mundial, a imagem peregrina percorre durante semanas os países europeus flagelados pela destruição dos exércitos alemães; durante a Guerra Colonial, o recinto da Cova da Iria torna-se o principal centro de contestação ao envio de milhares de jovens portugueses para os territórios africanos, local onde as famílias iam pagar promessas para que os filhos regressassem salvos e para que a guerra em África terminasse - uma situação que enervou bastante Salazar.

A Revolução Russa, que teve início em 1917, também esteve sempre muito ligada às aparições. Talvez os pastorinhos tivessem ouvido o nome do país, mas decerto desconheciam as implicações que o regime que substituía os czares iria ter em todo o mundo no século XX. Essa parte do segredo só será revelada por Lúcia em 1929 e dizia que só com a conversão da Rússia, esta não "espalhará os seus erros pelo mundo" e a paz voltaria à humanidade. Uma mensagem que tocaria muito João Paulo II - a primeira missa rezada diariamente em Fátima é em polaco e transmitida para a Polónia -, um papa que teve um papel fundamental na luta contra o regime comunista na Polónia e que foi determinante para o seu fim.

Agora, com a invasão russa, a mensagem da Virgem que Lúcia deixou escrita regressou de forma gradual à memória pública. Logo nos primeiros dias os portugueses lembraram-se de que um dos segredos se referia ao Estado invasor. De seguida, várias opiniões internacionais sugeriam a intervenção do Papa Francisco como a única solução para o fim do conflito. Em Portugal, entre outros, João Soares disse em entrevista que se o Papa fosse à Ucrânia, a atitude de Putin mudaria radicalmente.

No entanto, se Francisco não deverá deslocar-se ao palco principal da guerra, a capital Kiev, também não terá deixado de escutar - ou decidir por si própria - estes pedidos e anunciou a consagração da Rússia e da Ucrânia ao Imaculado Coração de Maria na próxima sexta-feira, em simultâneo em Fátima e no Vaticano. Em Portugal, estará presente o cardeal polaco Konrad Krajewski, que esteve na Ucrânia como enviado especial do Papa, e na Basílica de São Pedro o próprio Papa.

Se uma nova consagração pareceria impossível e desnecessária até ao princípio desta guerra, a razão de acontecer deve-se à mensagem que N. Sra. terá deixado aos pastorinhos na aparição de 13 de julho: "Para impedir a guerra virei pedir a consagração da Rússia ao meu Imaculado Coração (...). Se atenderem a meus pedidos, a Rússia se converterá e terão paz; se não, espalhará seus erros pelo mundo, promovendo guerras (...)". A mensagem não terminava aí e referia também que a Rússia promoveria "perseguições à Igreja. Os bons serão martirizados, o Santo Padre terá muito que sofrer, várias nações serão aniquiladas". Daí que Lúcia tivesse insistido na consagração, em especial da Rússia, ao Imaculado Coração de Maria logo em carta enviada ao papa Pio XII, em 1940. O que este fez dois anos depois ao consagrar o Imaculado Coração de Maria ao mundo e à Igreja, bem como em 1952 especificamente em relação à Rússia. Em 1964, Paulo VI renovaria a consagração da Rússia durante o Concílio Vaticano II. Esta, contudo, deverá ser a mais visível, pois o antecessor João Paulo II enfrentou dificuldades para a realizar em 1984, perante a imagem original que foi enviada para o Vaticano, pedido feito imediatamente após ter sobrevivido por alegada intervenção da N. Sra. de Fátima a um atentado.

Após esta iniciativa de Francisco, a nova consagração da Rússia e da Ucrânia, fica a pergunta: porque não vai o Papa a Kiev, tendo em conta que poderá ser o único homem no mundo que poderia com a sua presença alterar o curso da guerra que destrói a Ucrânia. Aliás, não seria a primeira vez que Francisco correria perigo em recentes deslocações, como mostrou a visita de três dias que fez no ano passado ao Iraque.

Poderá a explicação estar no Terceiro Segredo de Fátima? Vejamos: o primeiro referia-se à visão do inferno que tanto assustou os pastorinhos; o segundo ao que está em causa nos próximos dias: a consagração; o terceiro, é mais dramático e, apesar das leituras do então cardeal Ratzinger que o tentaram normalizar, Lúcia deixou escrito o seguinte sobre um Bispo vestido de Branco: "Tivemos o pressentimento de que era o Santo Padre". O que se segue é, segundo a sua visão: "O Santo Padre, antes de chegar aí [a uma escabrosa montanha, no cimo da qual estava uma grande Cruz], atravessou uma grande cidade meia em ruínas, e meio trémulo com andar vacilante, acabrunhado de dor e pena, ia orando pelas almas dos cadáveres que encontrava pelo caminho; chegado ao cimo do monte, prostrado de joelhos aos pés da grande Cruz foi morto por um grupo de soldados que lhe dispararam vários tiros e setas, e assim mesmo foram morrendo uns trás outros os Bispos Sacerdotes, religiosos e religiosas e varias pessoas seculares, cavalheiros e senhoras (...)".

Vale a pena recordar que Francisco consagrou o seu pontificado a N. Sra. de Fátima em 2013 e que, tal como os seus antecessores veio ao Santuário. Paulo VI foi o primeiro, quando os papas deixaram de ficar fechados entre os muros do Vaticano, seguindo-se João Paulo II e Bento XVI. Todos os últimos papas vieram sem falta a Fátima, como que crentes de que a ameaça de morte de um "Bispo vestido de Branco" não tenha terminado, mesmo que João Paulo II considerasse que a profecia se referia a ele, sentindo-se deste modo na obrigação de visitar Fátima para demonstrar a sua devoção e evitar tornarem-se no Bispo da visão da pastorinha. Após ter ouvido em 2017 vários depoimentos de teólogos e responsáveis do Santuário, nenhum deles garantiu que a interpretação de João Paulo II era definitiva. Resta a pergunta: o que pensa Francisco desta profecia?

Jornalista e autor do livro Fátima - a profecia que assusta o Vaticano (2017)

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