Porque é que ela se chama Valentina?

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Ela chama-se Valentina porque o pai, militante do PCP, quis dar-lhe o nome de uma heroína soviética, a cosmonauta Valentina Tereshkova, a primeira mulher do planeta Terra a viajar no espaço sideral.

A Valentina era uma criança pequenita quando um dia a sua casa foi invadida por inspetores da PIDE. Os agentes da ditadura começaram a revistar as divisões, a abrir gavetas, a empilhar objetos em cima de uma mesa. A criança, talvez entre o espanto e o receio, perguntou: “Pai, quem são estes senhores?...” O pai, certamente a tentar protegê-la do choque, respondeu-lhe: “Não te preocupes filha, são amigos do pai”.

Pouco depois José Marcelino voltaria a sair com esses “amigos”, foi isolado, interrogado, torturado e condenado a 16 meses de prisão, a maior parte deles cumpridos no Forte de Peniche.

A Valentina desta história é a atual diretora-adjunta do Diário de Notícias, Valentina Marcelino.

Trabalhei na mesma sala de redação que esta jornalista durante mais de 10 anos, mas só soube deste episódio quando fui assistir, a semana passada, na Culturgest em Lisboa, à peça A Colónia, onde ela própria relatou estes factos.

Contou ela esse episódio e contaram outras pessoas outros momentos que viveram nesses dias quando, em 1972, eram então crianças, um grupo de filhos de presos políticos do fascismo português teve uma alegria após um movimento solidário ter conseguido organizar, entre os meses de julho e agosto, uma colónia de férias para eles.

Note-se que para alguns, como foi o caso de Manuela Canais Rocha, a personagem principal da narrativa de A Colónia, e que na altura tinha seis anos, nunca até então tinham brincado com outras crianças.

No caso de Manuela isso aconteceu porque ela vivia com os pais na clandestinidade, sempre a fugir à polícia, sempre a mudar de identidade, sempre a trocar de casa, pelos menos duas ou três vezes por ano. Ela quase nunca saía à rua e, desse tempo, a frase que mais recorda da mãe, que vivia sempre com receio de ser descoberta, é esta: “Cala-te! Não faças barulho...”

A peça encenada por Marco Martins, imaginativa, é emocionante, mas não é uma pieguice possidónia. Procura até (e isso é mesmo dito duas ou três vezes) “não dramatizar” a situação. Mas só mesmo uma alma empedernida poderia ficar indiferente ao relato que nos foi feito por uma inteligente mistura de atores profissionais com a participação das pessoas que passaram por essa colónia.

Lembro-me de outro episódio: a colónia tinha acesso a uma praia da qual se via ao longe, muito ao longe, mas mesmo muito ao longe, o tal Forte de Peniche, transformado em prisão para presos políticos. À noite os miúdos juntavam paus e madeiros que apanhavam por ali e acendiam fogueiras no areal, na esperança de que os pais, das suas celas, vissem a luz – e, convencidos de que assim era, acenavam para o mar, para a cadeia longínqua, a gritar, a chamar: “Pai! Pai!”...

A peça, várias vezes, pede-nos para contarmos a história destas pessoas, para que esta memória do que era uma vida, sem alternativas, sem escapatória, sob uma ditadura, não se perca.

É o que faço aqui... e, pura coincidência, faço-o no dia a seguir ao PCP, sobrevivente desta repressão, ter realizado o seu XXII Congresso, na liberdade que tentaram tirar-lhe e defraudando, mais uma vez, as certidões de óbito que desde 1921 lhe vão, sucessivamente, passando.

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