Por uma (necessária) cultura de Defesa, base fundamental da resiliência

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Neste mundo cada vez mais complexo, em que a perceção das ameaças é cada vez mais difusa para todos os cidadãos, é necessário promover a cultura da Defesa, de uma forma mais próxima e assertiva da sociedade, como forma de preservar o nosso modo de vida e manter o Estado democrático.

A emergência da guerra em solo europeu, com a invasão da Ucrânia pela Federação Russa, em 24 de fevereiro de 2022, criou inicialmente uma surpresa nos povos europeus, que se foi transformando num receio por uma extensão do conflito para outros territórios da Aliança Atlântica e , por fim, chegou o choque da realidade do mau estado da Defesa Europeia em todos os capítulos, desde os equipamentos de Defesa, à capacidade industrial de Defesa Europeia, passando pelos modelos de serviço militar que não têm garantido a manutenção de efetivos mínimos para termos instrumentos militares credíveis e dissuasores.

Esta guerra trouxe à superfície um conflito em curso entre autocracias e democracias, em que as primeiras querem subverter e rever a atual ordem internacional, baseada em regras e no Direito Internacional, substituindo-a por uma outra ordem, baseada na força como instrumento fundamental das relações internacionais.

Uma boa parte dos problemas que enfrentamos nesta questão, do deficit de cultura de Defesa, resultam da falta de associação entre as ameaças percebidas pelo cidadão comum e a realidade, sendo que, durante muito tempo, o cidadão comum português (e com os restantes europeus a situação é semelhante) percebeu a ameaça de guerra como algo muito distante.

Regra geral, salvaguardada a situação duma ameaça real e iminente, o cidadão não considera que a segurança do Estado ou a sua segurança individual e da sua família estejam ameaçadas. Esta é uma vulnerabilidade que é aproveitada por ameaças estrangeiras com a utilização de estratégias híbridas, mais ou menos dissimuladas e com utilização de vetores não- militares, caso dos ciberataques e de operações comunicacionais de desinformação, entre outras. Vivemos num mundo de riscos e ameaças várias, algumas dificilmente percecionáveis, mas capazes de atuar a distâncias estratégicas de forma imediata. Mas a ameaça militar convencional, materializada pelos instrumentos militares hostis, também nos pode ameaçar de forma direta no nosso espaço geográfico, seja ele marítimo, terrestre ou aeroespacial, além dos já mencionados domínios informacionais e do ciberespaço.

A resiliência é um dos elementos fundamentais da nossa vontade, individual e coletiva, de resistirmos e ultrapassarmos, com sucesso, os desafios e os conflitos em que podemos estar envolvidos. Mas a vontade, sendo fundamental, não chega para vencer um conflito. É preciso construir uma capacitação estratégica adequada para nos defendermos com sucesso. Esse processo de capacitação exige recursos, que terão de ser alocados, em detrimento, muitas vezes, de outras necessidades da nossa sociedade. Para o poder político dum Estado alocar os recursos necessários e suficientes, à Segurança e Defesa nacionais, é fundamental ter o respaldo da sua população, no sentido de esta ter compreensão estratégica, na avaliação dos riscos e ameaças a que estamos sujeitos. É aqui que entra a cultura de Defesa.

Cultura, em termos sociológicos é, genericamente, uma programação coletiva da mente, que nos dá um elemento de distinção, para que prossigamos determinados fins. Sem complexificar o conceito, traduz-se em algo que fazemos (coletivamente) de forma natural, algo em que acreditamos e que é necessário fazer, para continuarmos a ser o que somos.

Julgo que não é necessária grande análise para vermos que os povos europeus, de forma geral e com algumas exceções, foram perdendo esta cultura de Defesa, que já tiveram noutros tempos, fruto da perceção (errónea) de que a guerra já não seria possível em território europeu, ou nas fronteiras dos nossos interesses vitais. Infelizmente, a realidade muitas vezes não se coaduna com a nossa vontade e surpreende-nos em situações difíceis.

Uma cultura de Defesa forte e esclarecida, além dos seus aspetos práticos, é também duma força moral fundamental para dissuadir uma ameaça de nos atacar. E é também fundamental para dar confiança aos nossos aliados, que temos a vontade, e correspondente capacidade, de darmos a nossa contribuição (adequada e não a versão minimalista) para um esforço coletivo que poderá ser duro e difícil.

E esta cultura de Defesa ter de ser reconstruída, porque iremos ter tempos difíceis pela frente. E temos de começar já pois as ameaças, reais ou potenciais, estão ao virar da esquina. Há algumas iniciativas que têm sido feitas, mas que não são suficientes, seja porque não atingem todos os cidadãos de forma transversal, seja porque, algumas vezes, quem as decidiu ou as aplica, não crê que seja atividades necessárias, fruto da falta de foco/interesse estratégico, que nos tem atingido.

Conscientes de que é necessário todos fazermos mais, temos de refletir sobre o que fazer no quadro do ambiente estratégico e geopolítico, tenso e difícil, que temos pela frente, no futuro imediato. Sobre isto refletiremos a muito breve prazo, mas temos de ter (todos) a consciência, a convicção e a vontade de fazer o que é necessário. E as lideranças, a todos os níveis, terão de ter a responsabilidade de atuar nesta conformidade de necessidade e urgência.

Como diz o provérbio oriental: Homens fortes criam tempos fáceis e tempos fáceis geram homens fracos, mas homens fracos criam tempos difíceis e tempos difíceis geram homens fortes. Temos de amenizar este ciclo oriental com uma velha máxima da filosofia prática portuguesa: o que tem de ser tem muita força. Estamos em tempos difíceis.

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