Por um Qatar 2022 apenas árabe!
A organização do Campeonato do Mundo Qatar 2022, à medida que os países se foram qualificando, guardou para esta fase a publicação de um cartaz com uma "parede-arcada que não o é" e com três portas abobadadas fechadas que simbolizam a entrada. Frente a essa parede com portas, estão vários jogadores envergando o equipamento oficial de cada país que representam. As portas estão de frente para quem vê o cartaz e os jogadores estão de costas viradas para o público e de frente para as portas em que querem entrar, o Mundial de Futebol, Qatar 2022.
Até aqui tudo bem, tudo faz sentido, não fosse a fachada apresentada uma iconografia berbere usada num evento e por um país árabe. Os activistas berberes magrebinos, com enfase para os marroquinos, mobilizaram-se nas redes sociais, contra mais este abuso e aculturação da sua identidade, propondo a formação de um colectivo de advogados berberes que tome em consideração processar judicialmente a poderosa organização deste Campeonato do Mundo de Futebol. Este palco, bem explorado, daria à causa amazigh uma visibilidade ainda mais interessante, ao caminho reivindicativo que esta(s) comunidade(s) autóctone(s) do Magrebe têm tomado e cujo sentido tem visto caminhos cada vez mais académicos e científicos.
Esta tensão permanente, tem visto um crescendo desde os primórdios dos tempos, que se pode situar pelos séculos VI e VII da nossa era, período desde o qual os berberes deram graças a Deus por terem sido islamizados pelos árabes, mas também viram nestes o colonizador que os dominou, tomou-lhes as terras e os foi aculturando nos seus hábitos e sobretudo língua(s). O próprio anátema de negatividade que o galicismo "berbere" incorpora, é muito difícil de explicar aos portugueses quando estes têm/veem em Bárbara um nome próprio bastante popular. As "Bárbaras" são aliás tudo menos um adjectivo qualificativo em português, enquanto que no Magrebe foram o qualificativo encontrado pelo colonizador árabe para identificar quem não falava a sua língua, por sinal a do Paraíso, da mesma forma que os romanos identificaram os povos do norte e centro da Europa que não falavam latim. Por isso mesmo, este autóctones exigem serem tratados enquanto amazighs, "povo livre" e não enquanto bárbaro/berbere. Esta luta identitária tem tido braço-de-ferro fundamental também na exigência em verem o tamazight considerado enquanto Língua Oficial nos cinco países magrebinos, com exemplos na Argélia, pré-oficializada na Constituição de 2002 e completamente incorporada na mesma na reforma constitucional de 2015 e em Marrocos, com oficialização directa na nova Constituição de 2011, o grande ganho marroquino que decorreu da Primavera Árabe. Na Líbia, a curiosidade durante este período, foi perceber que à medida que o país ia sendo libertado do leste para o oeste, as rádios locais passaram automaticamente a emitir nas línguas locais, passando também músicas e folclore local, proibidas pelo regime de Kadhafi, dando a entender que durante 41 anos, populações inteiras viveram o seu cripto-berberismo, para sobrevivência da sua própria cultura e referências.
É neste sentido que este apelo marroquino é feito à nação amazigh. O Qatar que se realize e que seja um sucesso, mas que se remeta à iconografia árabe, limitada actualmente pelos islamistas aos jogos de letras que fazem com o alfabeto árabe e a mensagens corânicas, deixando a arquitectura e decoração alheias (sobretudo as portas e a sua simbólica) para o Campeonato do Mundo de Futebol Sénior, que Marrocos ainda organizará esta década, oxalá!
Politólogo/arabista www.maghreb-machrek.pt
Escreve de acordo com a antiga ortografia