Por um cadastro multifuncional urbano inclusivo

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Portugal cresceu depressa e planeou pouco. Encheu as cidades de gruas e betão, atraiu investimento, legalizou fluxos migratórios, atraiu turistas, mas esqueceu-se de saber onde vivem as pessoas que constroem toda esta prosperidade. A resposta vê-se nas margens das áreas metropolitanas, onde barracas e contentores convivem com condomínios de luxo e hotéis de quatro estrelas. Quem ergue a cidade dorme à sua sombra, muitas vezes sem contrato, sem morada oficial e sem água potável.

Quando o Estado chega, não traz consigo um plano, mas retroescavadoras como aconteceu em Loures. As autarquias vizinhas competem entre si para “limpar” os seus territórios, numa luta silenciosa que empurra a pobreza de concelho em concelho, como quem varre o lixo para debaixo do tapete do vizinho. Em vez de se resolver o problema, afasta-se e oculta-se, alimentando desigualdades antigas.

Portugal precisa com urgência de inteligência territorial e justiça social articuladas. O que falta não é autoridade, é visão e compromisso. Propomos a criação urgente de um Cadastro Multifuncional Urbano e Social, baseado em Sistemas de Informação Geográfica (SIG) e Internet das Coisas (IoT) , que integre numa mesma plataforma, dados urbanísticos, ambientais, habitacionais e técnicos das infraestruturas, mas também e sobretudo um cadastro social único de pessoas em situação de carência.

Este cadastro social deve reunir, com rigor e respeito pela dignidade humana, a informação essencial sobre cidadãos em situação de habitação precária, sem morada fixa, sem acesso regular a serviços públicos e muitas vezes invisíveis para o Estado. É impossível planear a inclusão sem saber quem está a ser excluído.

As redes de telecomunicações, água, eletricidade, saneamento e resíduos urbanos são as veias invisíveis da cidade. Os SIG das empresas que operam estas redes contêm dados cruciais sobre localização de ramais, capacidade instalada, zonas de sobrecarga e áreas críticas. Sem essas camadas, qualquer mapa urbano é um corpo sem nervos. 

A inclusão social exige saber quem está fora do sistema, onde estão, em que condições vivem e que apoios já receberam ou ainda esperam. Isso só será possível com um cadastro social interoperável, partilhado entre municípios, organismos de ação social, saúde, habitação e planeamento urbano.

A gestão do território tem de ser feita com base em dados reais, mas também com rostos e histórias. Com esse cadastro integrado, poderíamos antecipar crises, planear reconversões urbanas, legalizar o possível, criar bairros mistos com construção modular, corredores de habitação assistida, centros de acolhimento com infraestrutura pronta e realojamentos com dignidade. Tudo isso, com uma visão única, partilhada entre o Estado central, as autarquias e os operadores de serviços públicos.

É tempo de perceber que as áreas metropolitanas são organismos vivos e interdependentes. A pobreza não respeita marcos geográficos, nem os muros invisíveis que se erguem entre freguesias e concelhos. As cidades não acabam onde terminam os perímetros municipais e a pobreza torna-se nómada para sobreviver.

Gerir o território não é só desenhar ruas, é conhecer as pessoas. Um cadastro social único, aliado a um cadastro técnico multifuncional, é o coração invisível da cidade justa que precisamos construir. Não basta demolir barracas para ganhar votos, é preciso reconstruir vidas com base em informação, compromisso e coragem.

Um Estado que faz desenvolver e prosperar o país com trabalhadores formais e informais, ignorando a condição habitacional de quem o constrói, não está distraído, é cúmplice. E um país que cresce em área construída, mas não em justiça social, cresce ao contrário e mais cedo ou mais tarde colapsa sobre a sua própria indiferença.

Especialista em governação eletrónica

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