Políticas anti-imigração e o fim dos Direitos Humanos como os conhecemos

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Têm-se multiplicado os escritos sobre o fim da ordem internacional como a conhecemos: fim da aliança americano-europeia, alteração radical do equilíbrio de poderes, surgimento de uma nova ordem mundial. Mas para além deste aparente “salto histórico” trumpiano, algo tem vindo a corroer, de forma mais lenta e sinuosa, o que se vinha construindo desde a II Guerra Mundial: o legitimar de discursos políticos xenófobos que, a institucionalizarem-se, poderão ditar um regresso a algo parecido com o mundo antes da II Guerra, no que à proteção dos Direitos Humanos diz respeito.

Nas eleições da Alemanha, um partido fortemente anti-imigração aparece como uma força real, com apoios internacional e interno consolidados.

Tenho considerado que a imigração deve ser regulada, e não me oponho a que, em certos momentos e para permitir que os Estados se ajustem aos novos fluxos populacionais, se restrinjam mais os números de entradas. No entanto, os partidos populistas anti-imigração não defendem isso, ou apenas isso. Há uma linha distintiva entre um discurso que ainda se insere no nosso património de Estado de Direito e o discurso de rutura. Vejamos.

O discurso destes partidos é praticamente monotemático: encontrou-se uma causa para os males de toda a sociedade, e esta localiza-se de forma estratégica nos nossos instintos mais primários - a desconfiança em relação ao outro. Esse outro agora não é o comunista, nem o judeu. É o imigrante. É esse que traz: (1) desemprego; (2) criminalidade; (3) hábitos culturais que nos ameaçam (4) e que vem viver à nossa custa.

Nada mais simples então: há que combater esse outro, e tudo na sociedade se resolverá. É impossível não ver aqui a repetição das mesmas narrativas, numa revisitação histórica autista e doentia (em que apenas os “culpados” vão mudando). Mas os problemas são ainda maiores, tocando algo que, entretanto, já se tinha conquistado.

As políticas anti-imigração já existiam nos finais do séc. XIX, nos Estados Unidos (sobretudo, anti-asiáticas), mas sofreram uma interrupção com a afirmação da universalidade dos Direitos Humanos e com a Convenção de Genebra destinada à Proteção de Refugiados de 1951.

Aquilo que poderia, pois, ter feito carreira, parou ali naquele momento histórico com esses documentos decisivos. Eles vieram exigir que, queiram ou não, os Estados protejam alguns estrangeiros. Passou a separar-se de forma decisiva a política de imigração e o dever de acolhimento de refugiados, este último tido como uma regra sagrada do Direito Internacional.

Ora, o facto de os chamados partidos populistas de extrema-direita terem objetivos de terraplenagem da imigração poderá bem levar a que, também no campo dos Direitos Humanos, o mundo como o conhecíamos sofra uma reviravolta, por se desdenhar ostensivamente aquela regra sagrada.

Não nos enganemos: a primeira ameaça às garantias fundamentais começa sempre em relação “ao outro”. Mas tem o potencial de se estender, que nem uma infeção silenciosa, a “nós”. Por isso, não tendo especial gosto em juntar-me ao coro de vozes que avisam que o mundo está a acabar, vejo-me forçada a pensar que, também aqui, se nada se fizer, poderemos estar a permitir que a História mude perigosamente de rumo, inscrevendo o discurso dos Direitos Humanos na poesia platónica do passado.

Professora da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa

Investigadora do Lisbon Public Law

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