Políticas de Saúde 2024 (I): Duas faces lunares - uma iluminada e a outra não

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As políticas de Saúde são extraordinariamente complexas. Por um lado, podem expressar intenções onde se reconhecem lógicas de manifesta racionalidade, bem fundamentadas, de fácil compreensão. Por outro lado, é frequentemente possível observar, simultaneamente, medidas onde isso não acontece - cuja lógica escapa a qualquer explicação aparente.

As políticas de Saúde 2024 convidam a uma leitura que torna essa dualidade particularmente evidente.

1 Uma face iluminada...

Na Saúde, as pessoas prezam muito especialmente a possibilidade de terem acesso fácil a cuidados apropriados quando deles necessitam. Não é isso que está a acontecer. Faz, portanto, todo o sentido começar por elaborar e apresentar um Plano de Emergência, focado na melhoria do acesso aos cuidados de saúde. Centrado, de início, nas prioridades mais evidentes. Privilegiando a capacidade de resposta existente no Serviço Nacional de Saúde (SNS), expandida por estímulos monetários excecionais para o aumento dessa resposta. Recorrendo, complementarmente, ao setor privado, quando necessário.

Plano este que aparece, adequadamente associado a um “Quadro Global de Referência do SNS”. Este, de horizonte obrigatoriamente plurianual (2024-06), dá seguimento à ideia já vertida no OE2024. Constitui uma aposta fundamental para o desenvolvimento do SNS. O “Quadro de Referência”, em causa, necessita de ser urgentemente ativado. Dele dependem o enquadramento há muito necessário à “contratualização interna” do desempenho no SNS, a efetivação de uma gestão autónoma de proximidade e a valorizações das funções de “direção clínica e de saúde” - sendo que estas são o garante da qualidade (bons resultados) dos cuidados prestados. Para essa ativação, as metas do Quadro de Referência precisarão de ser urgentemente discutidas, validadas ou corrigidas. Não deixa de ser surpreendente, o facto de esta matéria, ao contrário do Plano de Emergência, não ter merecido qualquer interesse por parte dos partidos políticos ou tido expressão no debate público.

Quanto à generalização das Unidades Locais de Saúde (ULS) no país, a ministra da Saúde tem argumentado, como outros, que os méritos duma reforma, com estas características, não estão suficientemente fundamentados. Decidiu, e bem, não descontinuar a reforma, mas antes, utilizar diversos dispositivos avaliativos, em curso, para decidir sobre o que fazer, num futuro, mais ou menos próximo.

2 ...E a outra não.

Há mais de 50 anos que Portugal é pioneiro, na Europa, no desenvolvimento dos cuidados de saúde primários, baseados em “centros de saúde”. Mais recentemente, uma significativa reforma deste setor do SNS permitiu abandonar o modelo burocrático, de comando-e-controlo, vigente, e promover unidades funcionais “autónomas e responsáveis”, através de um processo transparente de contratualização. E continuamos, assim, na atualidade, em destaque no concerto europeu.

É certo que este modelo organizacional nem sempre foi suficientemente cuidado, em todas a regiões país. Há eventualmente “unidades funcionais”, que, por falta de acompanhamento adequado, deixaram de ser atrativas para os jovens profissionais. Compete à administração do SNS, identificá-las e proceder às correções necessárias, e não delas desistir a favor do “desconhecido”.

É um facto, indesmentível, que não existe, nos setores social e privado do país, qualquer experiência minimamente comparável com a do SNS, neste domínio. E, no entanto, sem qualquer fundamentação conhecida - não se pode exigi-la numas coisas e ignorá-la noutras - o “Plano de Emergência” passa a “Plano de Emergência e Transformação” e inclui iniciativas como, por exemplo, a criação de 20 “Unidades de Saúde Familiar” sociais e privadas, concorrendo com o SNS para recursos muito escassos no país. Acresce que as Unidades de Saúde Familiar não são uma entidade isolada no contexto de um centro de saúde. No seu melhor, articulam-se com outras unidades e competências para proteger e promover a saúde das pessoas.

Igualmente, sem qualquer fundamentação conhecida, é o caso da concessão à gestão privada do Hospital de Cascais a extração de mais-valias da gestão do património dos cuidados de saúde primários do SNS. A que propósito?

Já não é o Estado a recorrer ao setor privado, quando necessário. Trata-se, isso sim, do Estado, promover, ele próprio, soluções privadas previamente inexistentes, por vezes claramente concorrenciais com o SNS.

Uma das decisões, num passado recente, difícil de entender, foi a transformação da Região de Saúde do Algarve, numa Unidade Local de Saúde (como “local”, tratando-se de todo o Algarve?). Agora o Ministério da Saúde anuncia que o “Algarve se ofereceu” para transformar a Região do Algarve num Sistema Local de Saúde (outra vez “local”?). A ideia foi, aparentemente, acolhida favoravelmente, apesar do seu anúncio não ter sido acompanhado de qualquer descrição, análise e fundamentação do projeto em causa. Do que se trata?

3 Et maintenant…

A crise da Saúde, em Portugal, está intimamente associada à incapacidade de o SNS atrair e reter os profissionais de saúde de que necessita. Para que essa situação particularmente preocupante seja superada, é importante que haja uma mensagem clara e urgente para as profissões de saúde. A de que estão a ser tomadas, expeditamente, as medidas necessárias para que o SNS possa oferecer, no mais curto prazo possível, condições de trabalho adequadas (equipamentos e instalações), carreiras profissionais atrativas (confiança no futuro) e remunerações justas (para todas as categorias profissionais).
Este não é um desafio fácil. Por isso mesmo, não deveria ser esta emergência um dos primeiros capítulos do “Plano de Emergência” apresentado?

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