Polícias. Diz-me com quem andas dir-te-ei quem és

Todos os polícias que ali forem vão estar a apoiar não só o Chega, mas as suas ideias que instigam xenofobia, racismo e polarizam a sociedade. Quando um polícia representa, armado, a autoridade do Estado, é tenebroso  imaginar que os que alinham com tais ideias podem ser uma multidão.
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Estávamos em novembro de 2019 e o DN Publicou uma reportagem que descrevia o seguinte: “Pacíficos e determinados, os manifestantes com as T-shirts do Movimento Zero foram dominantes no protesto organizado pelos dois maiores sindicatos da PSP e da GNR. A sua palavra de ordem - “Zero! Zero!” - foi a que mais se ouviu na caminhada entre o Marquês de Pombal e a Assembleia da República e, aqui, foram as mesmas palavras que mais alto soaram, num protesto em que os polícias começaram a desmobilizar pouco antes das 18.00 horas, depois de terem cantado o hino nacional de costas voltadas para a casa da democracia. Ficou clara a cumplicidade e a proximidade entre o Movimento Zero e o partido populista de extrema-direita Chega. Vestido com uma T-shirt do movimento de polícias anónimos, André Ventura foi o único político a subir ao carro de som da organização da manifestação - alegadamente sem ter pedido aos dirigentes dos sindicatos - e a discursar. ‘Hoje vocês mostraram que a polícia unida jamais será vencida’, gritou, seguido de uma chuva de aplausos e de gritos sonoros ‘Ventura! Ventura!’.”

O presidente do Chega era então o único deputado eleito pelo seu partido, com 1,29% de votos, nas Legislativas que decorreram cerca de um mês antes, a 6 de outubro, e a sua aproximação às polícias era já uma evidência: tinha identificado naqueles profissionais as fragilidades decorrentes de anos e anos  a verem ignoradas por sucessivos Governos várias das suas legítimas reivindicações por melhores condições de trabalho.

Tal como faz em relação a setores da sociedade que também se sentem desprezadas  no que respeita aos problemas que sentem, soube despertar os seus “monstros”, os seus medos, e instrumentalizá-los a seu favor. Inspirou os designados movimentos inorgânicos, como o Movimento Zero e, mais recentemente o Inop.

Na altura daquela manifestação em que os sindicatos ficaram literalmente “capturados” pelo Chega, tive ocasião de comentar com alguns dirigentes sindicais, os quais muito respeito, que os achara ingénuos. Argumentavam que se o Movimento Zero  conseguia aquela mobilização, o melhor era navegar na onda, não acautelando que isso poderia ser o princípio do seu fim.

As narrativas “inspiradoras” do Chega foram fazendo o seu caminho. Em 2022, uma reportagem de um consórcio português de jornalismo de investigação, que inclui jornalistas, advogados e académicos, denunciou que quase 600 membros da PSP e GNR, a maioria no ativo, usava as redes sociais para violar a lei ao escreverem mensagens racistas e que incitavam ao ódio. O Ministério Público instaurou um inquérito, que ainda não está concluído, e a Inspeção-Geral da Administração Interna abriu processos disciplinares a 13 polícias, cujo desfecho ainda não foi conhecido.

Estamos em julho de 2024 e o Chega, agora com 50 deputados, apelou aos policias para irem ao Parlamento, encher as galerias e as ruas junto à “casa da Democracia”, para pressionar o Governo a aumentar o Subsídio de Risco, em relação ao qual os partidos, incluindo este de direita populista, vão apresentar propostas.

As principais associações representativas da GNR e a PSP demarcaram-se da convocatória feita por André Ventura por existirem negociações em curso com o Governo, sendo a próxima reunião já na próxima terça-feira.

Em declarações ao DN, Bruno Pereira, presidente do Sindicato Nacional dos Oficiais da PSP e porta-voz da Plataforma Sindical que junta sindicatos da PSP e associações da GNR, disse “demarcar-se” dos apelos do Chega, mas também que não vai apelar aos polícias para não irem ao Parlamento; Paulo Santos, presidente da Associação Sindical dos Profissionais da Polícia (ASPP/PSP), o maior sindicato desta força de segurança, não condenou a iniciativa do Chega e defendeu que os “polícias devem mobilizar-se para todo o lado que entendam que lhes é útil, na defesa da sua condição”.

Respeito ambos, mas a sensação de déjà vu  invadiu-me ao ler aquelas palavras. Apesar de se demarcarem inequivocamente, ao escolherem não fazer um apelo, pelo menos, aos seus associados para que ali não se desloquem, porque vão subjugados a um partido político (seja de direita radical ou outro), estão de novo a navegar na tempestade.

Se o tivessem feito, todos os polícias que hoje possam encher as galerias e as ruas junto ao Parlamento, seriam só “os polícias do Chega”.

Diz-me com quem andas, dir-te-ei quem és. Se o tivessem feito, até podia ser um fracasso, galerias vazias, e descobrirmos que, afinal, os polícias, sabem que os seus sindicatos são as estruturas que os defende num Estado de Direito.

Se o tivessem feito, provariam que não querem ficar partidariamente rotulados o que, aliás, lhes está vedado pelo estatuto policial.

Todos os polícias que ali forem vão estar a apoiar não só o Chega, mas as suas ideias que instigam xenofobia, racismo e polarizam a sociedade. Quando um polícia representa, armado, a autoridade do Estado, é tenebroso  imaginar que os que alinham com tais ideias podem ser uma multidão.

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