Pode ou não pode?

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Decorria um debate parlamentar setorial com o ministro das Infraestruturas e Habitação quando, a propósito da construção do novo aeroporto de Lisboa, o líder do Chega sentiu necessidade de evocar um caso turco. Então, indignado com os 10 anos previstos pelo Governo para a realização desta obra – após 50 anos de indecisão –, André Ventura quis notar que “o aeroporto de Istambul foi construído e operacionalizado em cinco anos” e que “os turcos não são propriamente conhecidos por ser o povo mais trabalhador do mundo”.

Antes de mais, deixem-me notar que, de facto, os turcos não são conhecidos pelo trabalho – antes por serem um povo acolhedor e profundamente apaixonado pelas suas tradições e cultura. Todavia, o argumento de que é possível construir o aeroporto Luís de Camões em menos de 10 anos porque até os turcos construíram o deles em metade do tempo demonstra uma profunda ignorância por parte do deputado do Chega. Isto porque não só os turcos trabalham, em média, mais horas por ano do que os portugueses (gráfico 1), como as horas que trabalham são mais produtivas (gráfico 2). Mais, apesar disso, terá Ventura considerado as condições de trabalho que possibilitaram a construção de uma mega infraestrutura em apenas 5 anos? Em Istambul chegaram a manifestar-se contra as violações de direitos do trabalho cerca de 10 mil trabalhadores, e mais de 50 morreram. Quererá o mesmo em Alcochete?

A ideia, como de costume, desconstrói-se facilmente. O problema, como também é habitual, são as réplicas destes desvarios. Em menos de nada, e perante uma troca de palavras entre partidos da esquerda e o presidente da Assembleia da República, aqui estamos nós a discutir os limites da liberdade de expressão. Ressalvo que não há a menor dúvida de que, sistematicamente, o Chega tem um discurso racista e xenófobo. Não obstante, a questão essencial é: pode, ou não pode, um deputado ter aquele tipo de discurso?

Em bom rigor, pode. Aliás, como defendeu Aguiar-Branco, “o debate democrático é cada um poder exprimir-se exatamente como quer fazê-lo”, não querendo isso dizer que se ache normal ser racista – porque não deve ser. Assim, não cabe ao presidente da Assembleia da República avaliar e controlar o teor das intervenções dos deputados. Em primeira instância, cabe ao povo nas urnas. E, para que possamos decidir em liberdade, não é necessário um parlamento paternalista – que proteja os cidadãos de qualquer tipo de discurso –, mas um parlamento transparente quanto ao funcionamento e quanto aos valores que defende. Noutras instâncias, configurando um crime público, poderá iniciar-se um processo apenas por iniciativa do Ministério Público, mesmo que não se tenha verificado a apresentação de qualquer queixa.

Censurar o que quer que seja não é forma de lidar com discursos preconceituosos – apenas contribui para a vitimização dos autores e para a impossibilidade de as pessoas compreenderem a gravidade desta retórica. Por maioria de razão, a luta contra a extrema-direita faz-se no plano das ideias, denunciando todas as formas de preconceito e evidenciando, ponto por ponto, os motivos pelos quais é incorreta e inadmissível a proliferação do seu discurso.

Dito isto, nota-se ainda que, não estando Aguiar-Branco impedido de alertar para a natureza discriminatória do discurso de André Ventura, o presidente da Assembleia da República perdeu uma excelente oportunidade para o fazer e, inclusive, para pedir desculpa ao povo turco. Ainda assim, um deputado pode ter aquele discurso. Não deve, mas pode! Para o bem e para o mal, felizmente, haja liberdade.

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