Pode alguém ser quem não é?
Não é possível fingir ser-se quem não se é durante muito tempo, face a uma realidade extrema. Isto vale tanto para os indivíduos como para as instituições. A pandemia é uma forma aguda de realidade extrema. Oscilante, intensamente desconhecida (apesar dos avanços científicos), criativa nas suas metamorfoses, "visando" incrementar o seu sucesso na contaminação planetária, e dotada de uma durabilidade indeterminada, mas claramente superior à resiliência psicológica média do habitante urbano do século XXI. O impacto da pandemia sobre os indivíduos, não falando das vítimas mortais, terá custos ainda difíceis de estimar. Todavia, com mais ou menos danos e sequelas, a força vital que existe em cada um de nós impele-nos para nos reerguermos e seguirmos os nossos caminhos. Já o impacto da pandemia sobre o comportamento do Estado como um todo, ou declinado a partir de cada um dos seus poderes, poderá ter consequências exponencialmente mais graves. Quando um indivíduo perde o controlo sobre os seus atos, acidentes podem acontecer. Quando um governo calibra a sua política em função da fantasia e não da monitorização atenta do mundo real, os resultados trágicos ocorrem.
A deriva do executivo para facilitar começou logo após o primeiro desconfinamento. A letargia do parlamento e uma excessiva "cooperação institucional" do Presidente foram tornando os alertas dos investigadores cada vez menos relevantes para a decisão política, e mais influente a pressão - totalmente legítima mas objetivamente insensata - dos setores económicos para o regresso à "normalidade", ao ponto de o primeiro-ministro ter afirmado a impossibilidade de regressar ao confinamento da primeira vaga, sem perceber que estava a atar um nó nas suas próprias mãos. E aqui chegámos. Depois de um vertiginoso tropel de decisões e contramedidas, medindo forças com a pandemia até ela nos partir os braços. O saldo é meramente provisório, mas absolutamente esmagador: milhares de vidas perdidas pela persistência no erro; um SNS levado ao ponto da rutura; um sistema económico paralisado por um indeterminado tempo de penalização evitável, que se traduzirá em mais dívida pública (uma ameaça latente) e em mais desemprego e sofrimento social. Tudo isto acrescentado pelo completo desbaratar da credibilidade internacional de Portugal, em plena presidência europeia. Os motores da presidência alemã não desligaram (nunca desligam, aliás) e isso pode disfarçar as coisas, mas os danos reputacionais de um governo que jogou o pouco que lhe sobrava de alma para justificar uma nomeação controversa, aparecendo ao lado dos encobridores da corrupção com fundos comunitários, desperdiçando energia em plena tragédia pandémica, diz bem do ponto obscuro e irrespirável a que chegámos.
O manifesto descontrolo do governo, todavia, não torna boa qualquer proposta de o substituir. O governo de emergência nacional agora pedido violaria a revisão constitucional de 1982, que retirou ao Presidente os poderes para tal. Marcelo, felizmente, não é discípulo de Carl Schmitt (1888-1985), o teórico do decisionismo que inspirou Hitler a tornar-se ditador invocando a Constituição de Weimar. Mas a nossa III República está muito frágil e só sobreviverá se souber reformar-se. A violência da pandemia deixou uma lição a não esquecer: a maior qualidade num estadista não é o otimismo, mas sim a coragem de enfrentar o mundo tal como ele é, e não como se gostaria que ele fosse.
Professor universitário