Pessoas no meio do entulho

Publicado a

A construção de habitações provisórias, pelos próprios, em situação ilegal, em terrenos públicos ou ocupando parcelas privadas, não pode ser admitida em 2025. Barracas sem condições de habitabilidade, onde vivem crianças e adultos, usualmente sem água, sem eletricidade ou com eletricidade furtada, mas curiosamente com antenas de televisão por cabo nos telhados.  

Sim, são pessoas muitas delas que trabalham, que ganham pouco, que não conseguem arrendar uma casa aos preços de mercado. Sim, são pessoas que até estão integradas na economia, mas fora dos direitos e deveres que tudo o que não é negócio lhes oferece e lhes exige.  

E que fazem, ao verem-se as imagens na televisão, o que sempre fizeram nos seus países de origem: juntam-se, auxiliam-se mutuamente, encontram materiais e elevam a sua própria casa, da melhor forma que consigam, sabendo que não têm alternativa de modo a poder continuar em Portugal ou a manter o emprego que encontraram. A alternativa seria mudar de localização e mudar de emprego: para zonas em que, contudo, o emprego é escasso, mesmo que a habitação seja mais barata e mais abundante. Ou regressar aos países de origem, onde, mesmo perante a miséria em que vivem nos arredores de Lisboa, a realidade é muito pior. Os filhos não têm acesso a escola e a saúde, as casas e as suas condições de habitabilidade são muito semelhantes. 

É, portanto, difícil a sua decisão e não deve ser tratada de forma meramente administrativa. Tal como não pode ser apenas, como dizia o ministro da Habitação, essa ironia, um problema das autarquias.  

Não é naturalmente um exclusivo português, das zonas limítrofes dos grandes centros urbanos, especialmente na zona de Lisboa. Os el dorados do mercado, como os Estados Unidos, conhecem bem esta realidade, que se estende a muitos grupos de pessoas, não apenas aos trabalhadores imigrantes pobres. Talvez não vivam simplesmente com chapas de zinco e placas de contraplacado como paredes, mas vivem em trailers ou em casas apenas ligeiramente mais elaboradas do que as barracas, em campos destinados a essas habitações, mais adaptadas ao clima da zona. Ou em rulotes cuja transitoriedade que parece natural é substituída pela permanência. Num canal internacional, há poucos dias, era exibida uma reportagem sobre um enorme parque de rulotes nos arredores de uma cidade inglesa, onde centenas de pessoas, quase todos imigrantes brasileiros, tinham encontrado forma de ter “casa” e manter o emprego na cidade, pagando um valor de renda compatível com o seu salário. 

Não se trata, portanto, de um problema que possa ser tratado nem com o romantismo leviano de achar que as pessoas têm direitos absolutos a fazer o que bem entendem, onde o entendem, a si próprios e aos seus filhos (parece que afinal, para os filhos dos imigrantes pobres, se exige um pouco menos do que se exige para os nossos). Nem deve ser tratado com a indiferença burocrática que move pessoas como quem movimenta entulho, ambos confundidos naquele baldio. 

Talvez neste tempo o recurso a habitação provisória ou móvel seja até uma necessidade, especialmente em contexto de volatilidade da economia e das necessidades de mão-de-obra e de grande mobilidade das populações, enquanto casas definitivas não existem em oferta suficiente. O que seguramente não é preciso é aceitar-se com naturalidade que as pessoas construam barracas e as chamem de casas e que ali nasçam e vivam crianças. 

Professor da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa

Diário de Notícias
www.dn.pt