Pessoa, o homem dos sonhos
O poeta, narrador e ensaísta Manuel Moya, acaba de publicar na Editorial Subsuelo uma biografia de Fernando Pessoa, que vem completar, talvez definitivamente, as até agora existentes dedicadas a investigar os diferentes aspetos da vida e obra do poeta lisboeta por excelência. Trata-se de um volume de setecentas páginas, cuja leitura revela elementos inéditos do universo pessoano e clarifica conceitos que permitem, talvez pela primeira vez, esclarecer mal-entendidos e ultrapassar muitos preconceitos tanto da própria obra, como de muitas características vitais do poeta.
O poeta de Fuenteheridos, Manuel Moya, lançou-se nesta nova aventura a partir de uma base sólida, construída pacientemente ao longo dos anos, e que se ergueu desde o conhecimento e a sensibilidade garantida pelo sua impressionante e particular trajetória pessoana. Abarca desde traduções cuidadas de muitas das obras de Pessoa, entre as quais se destacam a do Livro do Desassossego e da Mensagem, os seus contos breves, relatos como O banqueiro anarquista, até aos principais poemas de alguns dos seus heterónimos, como Alberto Caeiro, Bernardo Soares ou Ricardo Reis.
Devemos também a Manuel Moya, além de muitas outras narrativas, uns excelentes romances centrados na vida - una e múltipla -, de Fernando Pessoa, entre os quais se destaca muito especialmente o também recente Chuva oblíqua, magistralmente centrado nos últimos dias do poeta. Neste romance, com certas piscadelas de olho a Antonio Tabucchi e a determinadas facetas pouco conhecidas e bastante herméticas de Lisboa, apresenta-nos traços da vida de Pessoa que, tal como disse Umberto Eco, revela matizes que, quando a História não consegue alcançar essas metas, apenas o romance é capaz de nos mostrar.
O livro apresenta ao leitor espanhol, mediante uma detalhada viagem cronológica, as principais etapas da vida de Fernando Pessoa, analisando, ao mesmo tempo, as influências e interesses que em cada uma delas delimitam tanto a sua obra como a sua mutável perspetiva vital. Assim, Manuel Moya apresenta-nos os primeiros anos do futuro poeta em três capítulos articulados em torno do seu nascimento em Lisboa, dos seus anos infantis em Durban, e, no período de regresso a Portugal, daquilo a que chama "Lisboa revisitada", para posteriormente se centrar nas primeiras etapas criativas, com especial análise da experiência futurista e da admiração e cumplicidade com Almada Negreiros, na sua participação em experiências como a revista Contemporânea ou a aventura posterior do Orpheu e na sua peculiar relação intelectual com Mário de Sá-Carneiro.
Uma parte primordial do livro de Moya centra-se na clarificação do que sabemos sobre os aspetos mais pessoais do poeta, como a sua vida amorosa, a sua sexualidade apagada ou os seus interesses políticos e a evolução destes ao longo dos anos, desde o apoio a regimes ditatoriais, primeiro de Sidónio Pais e a seguir de Salazar, até chegar a uma crítica ativa prematuramente interrompida pela sua morte.
Como não podia deixar de ser, Manuel Moya analisa o alcoolismo a que Fernando Pessoa se abandona desde cedo, até provocar, no final, o seu desaparecimento físico. De tal maneira, que um dos capítulos do livro, intitulado A besta, apresenta-nos os excessos do álcool, transformado, juntamente com a sua obra, na última âncora a que se amarra a sua vida desfalecente. É sabido que, quando se trasladaram os restos mortais de Pessoa do Cemitério dos Prazeres para o claustro dos Jerónimos, ao abrir o féretro comprovou-se que o corpo se tinha mantido praticamente inalterado, afirmando alguns dos presentes que esse fenómeno se deveu sem dúvida ao álcool acumulado nas vísceras do poeta.
A obra agora publicada põe também em relevo questões menos conhecidas do universo pessoano, como os seus interesses pelo ocultismo, a influência de outras culturas e línguas ou a descoberta de um orientalismo ativo que o conduz, inclusivamente, a experimentar formas poéticas próprias da cultura persa.
Dedica também Manuel Moya um capítulo específico a uma das obras principais de Pessoa: Mensagem, um livro que, segundo afirma o autor, não só acolhe todas as derivas pessoanas, como também irradia uma enorme luz sobre a sua obra. Recorda, também, que apesar do mito tão disseminado, Mensagem não é, nem perto disso, a única obra publicada em vida do poeta. Insiste também Moya que outro dos mitos que convém derrubar, de uma vez por todas, é o pretenso anonimato em que decorre a vida de Pessoa. Não é verdade que tenha passado os seus anos oculto de alguma maneira nos seus pequenos afazeres quotidianos, alheio ao mundo literário e à fama das suas obras.
A obra de Moya completa-se com uma série de apêndices e de notas que esclarecem muitos dos aspetos menos conhecidos da obra e vida de Pessoa. Além disso, uma bibliografia cuidada permite ao leitor mais interessado inteirar-se com segurança de tudo o que se publicou até à data, de tal maneira que Fernando Pessoa e todos os seus heterónimos nos pareçam ainda mais próximos.
Licenciado em Direito, escritor e doutor em Filologia Hispânica