Perdidos e achados no nevoeiro geopolítico
Muitos analistas e outros formadores de opinião pública citam habitualmente Carl von Clausewitz (1780-1831), o general prussiano autor do tratado Da Guerra. Esta obra é considerada uma referência teórica na matéria. A maioria dos conceitos que então desenvolveu, como por exemplo o de “nevoeiro da guerra” – a desinformação e a interpretação apressada de informações incompletas e de indícios enganadores – continuam a ser aplicados e a engendrar falsas pistas, para levar o inimigo, ou os simples analistas, a conclusões erradas, vantajosas para o lado que lhes deu origem. Nos vários conflitos armados que tive de procurar resolver ao serviço da ONU e mais tarde noutros cenários, entre guerras civis e regionais, sempre tive presente esse conselho sábio de Clausewitz. Mesmo hoje, quando sou chamado a comentar um facto importante, só aceito fazê-lo se tiver informação suficiente, proveniente de fontes diversas, e o tempo necessário para tentar perceber o que está por detrás de alguma possível bruma.
Nesta altura em que a comunicação social é instantânea – “breaking news” – e se reduz, na maioria dos casos, ao que pode ser dito num número bastante limitado de caracteres, o engano e a mentira são instrumentos de guerra, a favor de um lado ou do outro. É frequente ver comentadores cair nessas armadilhas e propagar as esparrelas. Depois, cabe às centrais de desinformação, do lado que achar o comentário favorável ao seu intento estratégico, tratar de disseminar essa leitura enviesada através das plataformas sociais. E assim se adensa o “nevoeiro da guerra”.
Uma boa parte desse nevoeiro é composto de partículas tóxicas que envenenam a opinião pública. Com três consequências negativas maiores nas nossas sociedades.
Uma primeira traduz-se num crescimento significativo do extremismo político, fundamentalmente anti-elites. Elite é um conceito amplo e confuso, que inclui políticos, empreendedores, caras conhecidas, famílias com nome sonante. Os únicos que escapam ilesos são os jogadores de futebol e uma ou outra estrela popularucha, que vende banalidades e manda beijinhos aos telespectadores, ou um palhaço que transforma a conversa geopolítica num ataque permanente ao nosso campo de valores. O contra-elitismo, que é algo mais refinado que o simples populismo, é um filão político, que, como Donald Trump nos mostrou, ajuda a ganhar eleições. Exige muito espetáculo político, iscas fáceis de engolir e vastos recursos financeiros que permitam chegar ao eleitorado e fingir empatia com o povo. Requer, ainda, um chefe simbólico, carismático, como agora se diz. Trump é um exemplo maior. Putin compreende e pratica uma política semelhante. Javier Milei, na Argentina, embora seja artista num filme de tipo B, também sabe do assunto. E temos várias cópias dessa gente por esse mundo fora.
Outra consequência aparece nas plataformas sociais. Algumas, como o X de Elon Musk, transformaram-se em ninhos de serpente que só cospem raivas e insultos. Estão infiltradas por agentes de ditadores bem como por apoiantes de crimes contra a humanidade. Os seus algoritmos estão programados assim. Como diria Clausewitz, na guerra comunicacional os objetivos são atemorizar o inimigo e propagandear as mentiras, milhões de vezes, que uma falsidade repetida até à exaustão acaba junto de muitos por ganhar o estatuto de verdade.
A terceira consequência leva-nos à conversa fiada sobre a necessidade de uma nova ordem política internacional. Querem fazer-nos esquecer que existe todo um sistema de normas, princípios e instituições que foi paulatinamente construído, adaptado e modernizado ao longo das últimas oito décadas. A nova ordem seria, de facto, um santuário para proteger os criminosos que controlam certos países. Ora, o sistema multilateral existente é suficiente para regular e estabilizar as relações internacionais. Tem, é verdade, problemas. A desordem de que se fala resulta das violações dos acordos internacionais e da falta de adaptação às realidades geopolíticas de hoje por parte de certas organizações. É preciso, isso sim, regressar ao respeito pelos princípios do direito internacional, e reequilibrar as relações de cooperação entre os Estados, tendo em conta a emergência de novas associações de interesses regionais e a urgência dos desafios vitais que temos pela frente.