Percepções, sombras e a opinião ilustrada

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Chove no molhado sempre que alguém relembra a diferença entre percepção de insegurança e os números oficiais do crime reportado. Como é evidente, a primeira é subjectiva e os segundos mais objectivos. O advérbio de intensidade não está aqui por acaso, pois existe também uma diferença - muitas vezes esquecida, quase sempre de modo intencional - entre a criminalidade participada e a criminalidade real.

Podemos situar essa diferença, por exemplo, nos crimes que a gíria designa de ‘proactividade policial’. Isto é, crimes que, por norma, não deixam marcas tangíveis imediatas. Apenas se detectam mediante a iniciativa das forças de segurança e demais órgãos de polícia criminal. Falamos do tráfico de estupefacientes, da condução sob o efeito do álcool, entre outros.

Esta particularidade faz com que as oscilações nos números se possam explicar tanto com a redução efectiva do crime, como com a menor capacidade operacional das polícias - provocada por orçamentos curtos, recursos humanos e materiais escassos, ou novas prioridades de investigação criminal que obriguem a realocar meios.

O hábito projecta outra sombra sobre os relatórios oficiais. Quando crimes como o furto ou o roubo se tornam habituais numa determinada geografia - uma rua, uma praça, um bairro - podem ser absorvidos pela vivência quotidiana. Tornam-se parte da paisagem. E daqui brota o proverbial ‘apresentar queixa para quê?’.

Sim, os números são sérios, devem contribuir para as políticas públicas de segurança, mas têm ângulos mortos. Não são as placas de Moisés. Devem ser objecto de leitura crítica. Estas e outras subtilezas são olimpicamente ignoradas pelos analistas de ocasião e pelos comentadores multiusos que ocupam o espaço mediático, o que inquina por completo a discussão.

Em bom rigor, o debate público português resiste até à realidade que vem nos números. Vejamos o caso de Lisboa, bem noticiado na semana passada por Valentina Marcelino, directora-adjunta do Diário de Notícias.

De acordo com os dados provisórios da Polícia de Segurança Pública, os dois grandes blocos de criminalidade, a geral e a violenta e grave, registaram decréscimos em 2024. Como boa parte dos comentadores já estão com a cabeça nas autárquicas, estes resultados transformaram-se, a um só tempo, em bandeira e em ponto final à conversa.

Mas esses mesmos números mostram que o decréscimo se deve, em parte, a uma redução dos crimes contra o património, já que se verificaram aumentos em alguns crimes contra pessoas. Ou seja, houve um aumento real em tipologias de crime que tendem a gerar maior alarme social.

Acresce que esses números - insisto, os mesmos - revelam um aumento significativo da criminalidade em algumas freguesias. Na zona sob a responsabilidade da 1.ª divisão da PSP, que inclui o tão falado Martim Moniz, foram participados 5994 crimes em 2023, o maior número em 10 anos.

Os dados divulgados por este diário mostram que é possível que a criminalidade registada, vista como um todo, reduza a mínimos da década e, em simultâneo, ocorram aumentos inéditos nos últimos 10 anos em partes desse mesmo território.

A leitura fina, aliada à capacidade de perceber matizes, revela que a insegurança sentida por muitos lisboetas não é uma anomalia matarruana de gente apostada em incomodar a placidez das elites ilustradas. É antes o reflexo de uma cidade que pulsa em zonas de sombra para a opinião mediática.

Dir-me-ão que havia mais crime nas ruas lisboetas na década de 1980. Havia, claro. Também havia mais violência doméstica e mais racismo, mas ninguém na plena posse das suas faculdades intelectuais usará esta melhoria para desvalorizar os números de hoje.

Politólogo.

EScreve sem aplicação do novo Acordo Ortográfico.

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