Paulo Futre: concentradíssimo
Antes dos grandes jogos internacionais, fechava-se no balneário a rezar cinco minutos pela sua família, pelo seu país e pelo Dr. Mário Soares. Esta devoção pelo Presidente, algo bizarra, decorria do facto de ter sido ele que o livrara de ser preso como refractário ao serviço militar, para o qual havia sido convocado e que, de resto, nunca cumpriu. Em troca dessa mercê inaudita, Soares pediu-lhe que honrasse a bandeira das quinas e Paulo Futre reciprocou o melhor que pôde, ou soube, jogando 41 vezes e marcando seis golos pela Selecção Nacional de Futebol, que serviu entre 1983 e 1995. Estreou-se em 27 de Abril de 1983, num jogo contra a Finlândia na fase de apuramento para o Europeu de 1984, contava então 17 anos e 204 dias de vida, o que, segundo dizem, constitui um recorde de precocidade ainda hoje intocado.
Antes disso, Paulo Jorge dos Santos Futre viu a luz no Montijo aos 28 de Fevereiro de 1966, e aí cresceu até ter 1,75m de altura e um talento ímpar para lidar com uma bola, que é redonda, no meio de 21 mancebos como ele. Foi dos poucos futebolistas portugueses, talvez o único, a jogar pelos “três grandes” – Sporting (1975-1983 e 1983-1984), Porto (1984-1987) e Benfica (1993) –, mas seria por terras de Espanha, no Atlético de Madrid de Gil y Gil, que conquistou a fama e a fortuna em duas fases distintas: a do auge, 1987-1993, com 163 jogos disputados e 38 golos marcados; e a do declínio, 1997-1998, com 10 entradas em campo, mas sem qualquer golo averbado. De caminho, ainda jogou pelo Olympique de Marselha, em 1993, pela italiana Reggiana, 1993-1995, pelo lombardo Milan, 1995-1996, e pelo britânico West Ham, 1996-1997, terminando a carreira no nipónico Yokohama Flügels, em 1998, onde disputou 13 partidas e marcou três golos. Esse ano de 1998, curiosamente, marcou uma dupla extinção: a do clube Yokohama Flügels, absorvido pelo Yokohama Marinos, seu arquirrival; e a da trajectória artística de Paulo Futre, que, como sucede com muitos dos seus colegas de ofício, na fase derradeira da carreira “nunca atingiu os patamares exibicionais que o notabilizaram”, na expressão futeboleira da própria da Wikipédia.
Eis uma inverdade grosseira. Em Março de 2011, Futre regressaria a um patamar exibicional tão grande ou até maior do que aquele que antes mostrara nos relvados, um patamar exibicional que lhe devolveu a glória em crise e que o elevou a píncaros de notoriedade nunca vistos, abrindo-lhe de imediato as portas da novela “Laços de Sangue”, onde fez de si próprio, e, mais recentemente, em 2022, da novela “Rua das Flores”, onde voltou a fazer de si próprio, como é próprio das personalidades únicas e inconfundíveis, incapazes de serem outras que não elas mesmas, tal a fundura da marca que no mundo deixam e o vinco de carácter que exibem e protagonizam.
Consistiu aquele turning point numa histórica conferência de imprensa realizada aos 24 de Março de 2011, no quadro da candidatura do sr. dr. José Eugénio Dias Ferreira à presidência do Sporting Clube de Portugal. Nesse ensejo memorável, hoje disponível em vários fora, YouTube incluído (e com quase um milhão de visualizações), Paulo Futre, falando rouco, gesticulando muito, sempre fanfarrão e gingão, anunciava, qual São João Baptista da bola, a contratação salvífica do “melhor jogador chinês da actualidade”, cujo nome, porém, não especificou. “Vamos só abrir um departamento para esse jogador chinês”, graças ao qual, garantiu, “vai vir charters todas as semanas de 400 ou 500 pessoas”, tendo o Sporting “comissão dos charters, dos hotéis, dos restaurantes, dos museus, etc., etc., etc.” Além do chinês misterioso e dos charters às dúzias, autêntica árvore das patacas, aquela rueda de prensa foi ainda marcada por um outro momento mítico, onírico, piramidal, quando, a dado passo, Futre increpou um jornalista na plateia, pelos vistos mal-comportado, com uma frase célebre, hoje estudada nos manuais de História: “sócio, por favor, estou concentradíssimo.” Para uns, delirante. Para outros, visionário. E o certo é que, sem ter conseguido guindar o seu candidato à liderança leonina (Dias Ferreira teve 16,5% dos votos), a estrondosa alocução do atleta do Montijo resgatou-o do esquecimento típico a que são votados os futebolistas na reforma e deu-lhe, por assim dizer, uma segunda e fulgurante vida, agora nos relvados mediáticos e das revistas do coração. Ainda há pouco, Fevereiro de 2024, ficou o país suspenso com a sua desaparição momentânea (cf. “Chegou ao fim o misterioso «desaparecimento» de Paulo Futre, afastado da TVI há um ano com um contrato de 12 mil euros por mês”, Flash!, de 27/2/2024), tão habituados estamos à sua assídua presença na mídia, onde tem feito muito e de tudo, sobretudo de si próprio.
É essa a sua maior trouvaille, a grande arma secreta: ser autêntico como poucos, mesmo quando polémico ou cáustico. No fundo, continuar a ser, na pose e nos ademanes, no modo de ver o mundo, aquele rapaz pintarolas do Montijo que andava na rua com os “chavalos” do bairro, o Pato, o Ginja, o Zé Goelas, o Carraças, que paravam na Praça da República e dali iam fazer “porcaria” por onde calhasse, fosse a jogar à bola (por vezes à lata, na falta de esférico), fosse a convencer as coleguinhas a despirem peças de roupa no jogo “da garrafa”, nas traseiras do liceu, o que valeu a Futre ser apanhado por um contínuo indisposto e disciplinarmente suspenso, facto que o motivou a largar os estudos para sempre.
Além da doideira do futebol e do underwear das colegas, Paulo tinha outras paixões desportivas, como o andebol, onde foi guarda-redes da selecção de Setúbal e, até aos 17 anos, jogador da equipa do Parque de Campismo do CCA (Costa da Caparica), o pingue-pongue e o futebol de salão, refere o próprio num livrinho infantil, Futrinho. A Lenda, com ilustrações de Ruth Bastardo (Chiado Books, 2013).
Quando era miúdo, a sua família “tinha dificuldades até para comer”, conta-nos o astro na sua biografia, escrita a quatro mãos com Luís Aguilar (Paulo Futre. "El Portugués". A biografia de um dos maiores futebolistas portugueses de sempre, Livros d’Hoje, 2011). E foi o Ginja que lhe emprestou o B.I. e a identidade falsa para, com o nome de Rogério Paulo Viegas Alves, se inscrever num torneio de futebol 11 organizado pelo Sporting, o “Onda Verde”, competição de descoberta de talentos pelo país fora, preparada por uma figura de lenda, Aurélio Pereira, a quem Futre chama, não por acaso, “o maior génio da formação em Portugal e um dos melhores do mundo” (de facto: além de Futre, foi ele quem descobriu Figo, Simão ou Ronaldo, just to name a few). O torneio, porém, era aberto apenas a maiores de 10 anos, mas Paulo só tinha 9 e, por isso, matriculou-se com o nome do Ginja, razão pela qual foi como Rogério Paulo Viegas Alves que subiu ao verde de Alvalade, onde a sua equipa de amadores do Montijo, O Cancela, acabou vergando os leões nos penáltis (o Montijo, diz ele, “era uma terra de futebol”, recordando os nomes de José Neto, Celestino, Fernando Mendes, Ricardo). No final, Aurélio Pereira perguntou por ele – ou, melhor dito, pelo Rogério Paulo Viegas Alves –, mas Futre, sabendo que jogara contra as regras, já se tinha posto a milhas. No ano seguinte, regressou a Alvalade, sendo desta feita derrotado pela equipa do Liceu Camões, o que não impediu Aurélio Pereira de voltar a tentá-lo com uma oferta para o Sporting. O pai, porém, não deixou. Porque ele era ainda muito novo, 10 anos, e porque, ó sorte marreca, a família não tinha meios de o transportar até Lisboa, para treinar e jogar.
É assim o destino: tempos depois, os jornais e a TV começaram a anunciar que a Direcção-Geral de Desportos estava a organizar uma competição para escolher os titulares da selecção de sub-11 para jogar num torneio em Rocheville, França. José Paulo Silva Futre, pai de Paulo, inscreveu-o na área do Montijo e, através de etapas sucessivas, o seu nome acabou constando dos 500 candidatos da última fase de selecção, da qual iriam ser escolhidos os 16 eleitos. Na época, Paulo Futre tinha 10 anos – repete-se: 10 anos – e vinha sozinho de barco do Montijo até Lisboa, ficando hospedado no centro de estágio da Cruz Quebrada (acabou por ir a França, e logo como capitão, na sua primeira viagem aérea).
Seria assim nos anos vindouros, quando já pertencia ao Sporting. Saía do Montijo por volta das 15h30 para treinar em Lisboa às 18h30. Depois, terminado o treino, arrancava de Lisboa no último barco, o das 22h, chegava a casa às 23h30. Havia dias em que perdia o barco do Montijo, tinha de ir pelo Barreiro, chegava ao lar às duas da manhã, ou mais. E outros em que os barcos não podiam sair por causa do temporal e ele, com 10, 11 anos, tinha de ficar a dormir na estação, em cima das cadeiras, a aguardar pelo primeiro barco da manhã e ir directo para a escola, regressando à tarde para Lisboa, para mais um treino, sempre mais um treino. “Muitas vezes o temporal era tão forte – diz ele – que eu chegava a pensar que o barco ia afundar-se. Apanhei sustos incríveis. E quando comecei a ganhar dinheiro, jurei que nunca mais voltaria a andar de barco na vida. Nem de iate. Nada. Prefiro estar em terra.”
Os estudos, claro, ressentiram-se deste alucinante ritmo de vida, tanto mais que a vontade para os livros já era pouca, quase nenhuma. Como o próprio reconhece, o seu percurso escolar foi vítima da sua precocidade: quando tinha 11 anos, já era iniciado, quando tinha idade de iniciado já estava nos juvenis, quando era juvenil de primeiro ano alinhava com os juniores e, com apenas 15 anos, chegou a segundo capitão da secção de juniores. “É fogo. Não tinha tempo para mais nada. Entre o Sporting e as selecções, passava seis a sete meses nos hotéis. E por muito bom aluno que sejas, ninguém pode passar de ano se não assistir às aulas. Esse era o meu maior problema. Representava várias equipas ao mesmo tempo (tanto naquelas em que tinha idade, como nas outras que estavam acima). Perante isto, a escola foi-se tornando uma miragem até que abandonei os estudos por completo.”
Aos 13 anos, chumbou por faltas, logo em Janeiro. Por castigo, o pai pô-lo a trabalhar como bate-chapas durante as manhãs, indo às tardes para os treinos. Futre ainda recorda que, quando surgiam as convocatórias da selecção, enquanto os colegas davam como profissão jogador ou estudante, ele surgia assim:
Nome: Paulo Jorge dos Santos Futre
Posição: Extremo-esquerdo
Profissão: Bate-chapas.
Passado o sorriso com a historieta, há uma pergunta que surge e se impõe: quantos jovens são sacrificados, a cada ano que passa, por causa da tara da bola? O que desse mundo sabemos são sempre as histórias de êxito, Ronaldo, Futre e assim, coroadas por muitos milhões. Sobre os outros, o silêncio. E são certamente às centenas, talvez aos milhares por ano aqueles que desgraçam a vida e comprometem o futuro na miragem da glória em campo. O perfil é típico: miúdos das classes baixas que abandonam os estudos em nome de uma carreira na bola, fazendo-o muitas vezes, ou quase sempre, com a tolerância ou até com a conivência dos pais, que, por ignorância grotesca ou avidez do ganho, julgam ter em casa um astro em potência, que a todos fará milionários. Depois, há todo um “sistema”, ou máquina trituradora, que promove e alimenta a coisa, desde “olheiros” a treinadores, passando por dirigentes desportivos, políticos e por milhões de adeptos, que na fúria dos estádios nem sequer se interrogam sobre quantos terão ficado pelo caminho para que aquele circo exista e prossiga. Afirmar que o futebol é um instrumento de promoção social das classes desfavorecidas é um mito e uma falácia que ninguém ousa denunciar, tal o poder que a bola atingiu nos nossos dias, chegando-se ao ponto de, nas candidaturas à liderança de clubes, já terem figurado primeiros-ministros e presidentes de câmara em exercício e até cardeais da Igreja sedentos de protagonismo.
Na sua biografia, Paulo Futre descreve alguns episódios bem reveladores do impacto que a fama súbita teve naquele miúdo do Montijo que, nos intervalos dos treinos, trabalhava como bate-chapas numa oficina de automóveis e jogava na sua terra com os equipamentos do Bairro da Calçada, que tresandavam a suor à distância, pois nunca eram lavados de semana para semana. Estreou-se no Sporting com 16 anos, em 16 de Fevereiro de 1983, e, não muito depois, com apenas 17 anos, foi convocado para a Selecção e entrou na segunda parte de um jogo oficial contra a Finlândia, em 23 de Setembro de 1983.
Por essa altura, à saída do Estádio de Alvalade, e após uma partida com a Portuguesa dos Desportos, uma rapariga pediu-lhe o primeiro autógrafo. Sem saber o que fazer, rabiscou “a assinatura de um miúdo”, garatujando o nome completo, como no bilhete de identidade. Só depois, enquanto fazia a travessia entre Lisboa e o Montijo, começou a treinar a sua assinatura oficial, que ainda mantém. São eloquentes as suas palavras: “naquele momento tudo é novidade. A fama, o assédio das pessoas, o facto de não poder voltar a andar na rua normalmente. Tudo impressionante. E eu não estava preparado. Como poderia estar? Um chavalo. Dezasseis anos. Não está nos livros. Ninguém te ensina como deves comportar-te numa situação semelhante. Há milhões de livros, sobre milhões de assuntos. Mas nenhum explica como um ser humano de apenas 16 anos deve reagir quando lhe pedem um autógrafo. E quantos não são os miúdos que, perante uma situação destas, mudam de personalidade e julgam-se os donos do mundo?” Palavras sábias de Paulo Jorge dos Santos Futre, de quem Fernando Cabrita dizia, já em 1983, “o Paulo vai ser um grande craque. Nasceu para isto.” E foi.
Em 1984, quando passava férias em Benidorm, porque ninguém é perfeito, recebeu uma chamada para ir jogar a Nova Iorque, numa daquelas paradas de estrelas organizadas pelo Cosmos. Ao princípio, não acreditou. Depois, soube que tinha sido convocado juntamente com dois portugueses apenas, Gomes e Jordão. Em Manhattan, ficou hospedado no Hilton, na 5.ª Avenida, numa suite monumental, em que se olhava para o chão da casa-de-banho e se conseguia ver a TV da sala (“eles usavam um jogo de espelhos qualquer que nunca tinha visto. Achei aquilo fantástico, Americanices ao melhor estilo”). É fácil imaginar o efeito deste mundo novo num miúdo que, pouco antes, cirandava pelo Montijo na companhia do Pato, um puto que andava sempre de fita à McEnroe na cabeça e que roubava revistas Playboy nos quiosques para fins inconfessáveis.
Além disso, as mulheres. Charters delas, novas e velhas, solteiras e casadas, tantas que Futre lhes dedica um capítulo inteiro da sua autobiografia política. Uma delas, Ana, tinha Futre 19 anos, envolveu-se com ele a instâncias de Luís Teles Roxo, e com o consentimento do marido, grande amigo daquele vice do Futebol Clube do Porto, numa estratégia para controlar o jogador-estrela que na altura dava sinais de baixa de rendimento. No dia em que fez 19 anos, 28 de Fevereiro de 1985, recebeu 547 cartas, e, nos restantes dias, eram missivas às centenas. Numa delas, duas raparigas bissexuais propuseram-lhe uma ménage à trois, que Futre obviamente aceitou. Houve ocasiões, porém, em que algumas sabidonas quiseram chantageá-lo, alegando estarem grávidas (como Eva, que pediu, e teve, “um autógrafo nas cuequinhas”, dado ao som de Julio Iglesias), num tempo em que, conta ele, “ainda não se falava da praga do vírus da sida.” Não iremos, está claro, descrever a par e a passo as proezas sexuais de Paulinho, as quais incluíram, em Madrid, uma madame argentina que intermediava jovens modelos e apresentadoras da televisão para “magnatas.” Foi ela que negociou uma noite de sexo com uma cinquentona milionária, cujo filho era fã devoto de Paulo Futre. Este recusou a oferta, de 20 milhões de pesetas, mas conheceu e ficou amigo da ricaça, que lhe deu um Rolex de presente.
Com a fama e as fãs, um tremendo stress. Se quisermos resumir numa palavra a vida de Paulo Futre na época, talvez a palavra “pressão” seja a mais adequada. Pressão de milhões de adeptos, pressão de dirigentes desportivos e dos seus colegas de balneário, pressão de mulheres sequiosas, pressão dos tarados da bola. Quando trocou o Sporting pelo Porto (“a melhor decisão da minha vida”), fizeram-lhe a vida negra. No FCP, 95% dos jogadores eram do Norte e, nos seus primeiros meses na Invicta, esta estava pejada de grafitos indecorosos: “Futre, cabrão”, “Odiamos-te, mouro” e, em frente a sua casa, “Vamos matar-te, mouro de merda.” Enquanto isso, a sua família atravessava momentos terríveis no Montijo: “todos os dias acontecia algo perfeitamente nojento. Estragavam a porta de casa, partiam as janelas à pedrada, insultavam os meus pais, o meu irmão. Um filme de terror.” Um dia, estava a falar com a mãe ao telefone e Maria Augusta perguntou-lhe, angustiada, “O que fizeste à nossa família, Paulo Jorge? Não posso continuar a viver assim, não aguento mais.” Do outro lado da linha, Paulo Jorge prometeu-lhe que iria comprar uma casa, tirá-los daquele inferno para uma vida calma, mas os seus pais recusaram, nunca quiseram sair do Montijo.
Aquela conversa com a mãe deixou-o “de rastos.” “O que faço agora? Abandono o futebol e vou novamente trabalhar como bate-chapas? Vou para as obras? O que faço, meu Deus? Alguém que me ajude…” Decidiu permanecer nos relvados, com o inestimável apoio de Pinto da Costa, a quem não poupa elogios (“uma das pessoas mais fantásticas que já conheci no futebol e na vida”, “um génio”). No Porto conheceu Isabel, sua companheira de vida, mãe dos seus dois filhos, Paulinho e Fábio, com quem, todavia, nunca chegou a casar, coisa que lhe valeu críticas de alguns sectores da Igreja portuguesa, agravadas quando foram pais solteiros.
A sagração do FCP como campeão nacional, em 1984-1985, acalmou os adeptos dos Dragões, cujo fanatismo gerava episódios como este: uma noite, circulava Futre de automóvel pela cidade, tendo Laureta ao lado, e, num cruzamento, uma moto embateu violenta e deliberadamente contra o seu carro, dando várias voltas no ar. O condutor da moto, coberto de sangue, acerca-se do automóvel de Futre suplicando-lhe, histérico, “Temos de ganhar no domingo. Paulo, temos de ganhar no domingo!” Noutro episódio, igualmente revelador, Futre conta que, sempre que havia deslocações a Lisboa, e tomavam as refeições no hotel, Octávio trocava os pratos servidos aos jogadores, com receio de que estivessem envenenados com qualquer coisa que os pusesse fora de campo. Pairando acima de tudo isso, Jorge Nuno, “o líder supremo”, omnipresente na bancada, no banco dos suplentes, no balneário. Segundo Futre, “falava com os olhos” e “bastava olhar para nós e percebíamos quando estávamos a pisar a linha.” Palavras de apreço também para Artur Jorge, “um motivador nato”, e para Octávio, o seu “cão de guarda.”
Paulo Futre atribui a Artur Jorge o triunfo do Porto em Viena, na final dos Campeões da Europa de 1987. Ao intervalo, o Bayern Munique estava a ganhar por 1-0. Então, no balneário do Prater, num momento heróico, o treinador reuniu os jogadores cabisbaixos. Despiu o casaco, tirou a gravata, arregaçou as mangas, e disse: “Meus senhores, levantem a cabeça e olhem para mim. Têm 45 minutos para entrar na história. Isto não é um sonho. Está a acontecer. Vocês são melhores do que eles.” E depois repetiu: “Estão a 45 minutos de entrar na história. Por isso, vamos lá para dentro. Vamos ganhar isto.” O calcanhar de Madjer empataria a partida, ao minuto 79’ e Juary decidiria o jogo aos 81’, dando a Paulo Futre o troféu mais importante da sua carreira futebolística.
A vitória na Champions tornou-o cobiçado pelos grandes europeus – Real Madrid, Barcelona, Juventus –, e Futre chegou a entrar em negociações com o Inter, mas Gil y Gil chegou-se à frente e levou-o para o Atlético de Madrid a troco de uma quantia estratosférica, naquela que foi, à época, a segunda contratação mais cara da história do futebol, só superada pela de Maradona (“Pai, se dentro de quatro dias este homem ganha as eleições, podes reformar-te. Nunca mais vais precisar de trabalhar”, disse Paulinho para casa), além de uma casa com piscina e de um automóvel de luxo. Ante a incerteza da vitória de Gil y Gil, e como o stand só tinha disponível um Porsche amarelo, Futre decidiu à cautela levar o que havia, com Pinto da Costa no gozo: “Paulinho, o carro é mesmo muita bonito.” O Porsche amarelo, que Futre qualifica de “mítico”, converteu-se numa das principais imagens de marca do jogador e foi na época, di-lo ele, “o carro mais conhecido da Península Ibérica.” Na verdade, em qualquer antologia iconográfica dos anos 80 são imprescindíveis as fotos de Futre sentado no capô da máquina, a solo ou com a esposa, com aquele cabelinho em tufa, risca ao meio, e de perna alçada, os calções muito apertados na zona da fruta e, claro, os inevitáveis chinelos, nas variantes com e sem meias.
A amargura de não ter ganho a Bola de Ouro (segundo ele, por intervenção malfazeja de um jornalista português, que votou em Ruud Gullit) ainda hoje persiste, não tendo sido apagada pelas espantosas exibições ao serviço dos colchoneros, que lhe deram grandes triunfos, entre os quais avulta o ter recebido a Taça do Rei das mãos de Juan Carlos de Borbón, que consigo falou num português impecável, e com palavras assaz simpáticas.
A pressão, todavia, nunca parou – e, pelo contrário, aumentou e muito de intensidade, obrigando-o a andar protegido por guarda-costas (Pato, o seu amigo de infância) contra a fúria dos adeptos do Real e a avidez dos paparazzi (a este propósito, Futre conta a inenarrável história de um repórter português a quem ele franqueou as portas da sua casa de férias no Algarve e que, insatisfeito e ingrato, foi apanhado dois dias depois a devassar a propriedade). Por terras de Espanha, foram dois os factores de stress, a juntar aos outros: a tropa e a ETA. Quanto à primeira, o facto de se ter eximido ao cumprimento dos deveres militares colocou-o na iminência de ser detido e extraditado para a pátria ou, vindo até esta, ser preso por refractário. Soares quebraria o galho, Futre ficou eternamente grato. No que toca à ETA, estava em Madrid no auge do terror bombista, com o atentado no centro comercial Hipercor, 21 mortos, em Junho de 1987, outro em Saragoça, 11 mortos, e o assassinato de Miguel Ángel Blanco, Julho de 1997, aquando da sua segunda passagem pelo Atlético. Em 1990, quando lá estava, o governo espanhol pediu a extradição de um bando etarra detido em Portugal, o que faz aumentar exponencialmente o nível de ameaça sobre os lusitanos, com Paulo Futre, naturalmente, entre os principais alvos. “Sentia-me um cadáver andante. Sempre paranóico. À espera do momento em que houvesse alguma acção contra mim”, assim recorda ele esses anos de chumbo, em que pouco saía à rua e treinava em casa com o seu pastor alemão, o Tanque. O amigo Pato e outros compinchas, que tinham feito a tropa nos Comandos, guardaram-no nesse aperto, a que se juntou um outro, esse mais grave e evidente: o presidente do seu clube.
Hoje, o nome de Gregorio Jesús de Gil y Gil (1933-2004) pouco dirá às gerações mais novas, mas muito, e péssimo, aos leitores mais entradotes. Breve estatística: 17 anos à frente dos destinos do Atlético de Madrid, três mandatos como presidente da câmara de Marbelha, afastado do exercício de cargos públicos durante 28 anos pela prática de delitos vários, todos do piorio. Com Paulo Futre, teve querelas épicas, algumas das quais encenadas, apenas para inglês ver, mas muitas outras muito sérias, de morte, com insultos de parte a parte, amuos de semanas, meses, seguidos de reconciliações românticas, com juras de amor eterno. “Se Futre fosse mulher, teria sido minha amante”, disse um dia Gil y Gil, num resumo eloquente daquela relação tão tóxica. “El portugués” serviria o Atlético em duas ocasiões distintas (1987-1993 e 1997-1998) e, de uma forma ou doutra, o seu nome sempre apareceu ligado ao clube dos colchoneros, onde, às tantas, começou a adquirir um poder que ensombrava o de Gil y Gil. Este, louco como sempre, continuou alegremente a despedir treinadores a um ritmo inaudito – em 17 anos de mandato, despachou 32 treinadores! –, com isso querendo mostrar, a Paulo Futre e ao mundo, que era ele que mandava.
De permeio, o extremo-esquerdo do Montijo esteve com a Selecção Nacional no Mundial do México de 1986, presenciando, portanto, em directo e primeira mão, uma coisa chamada “caso Saltillo.” Não é fácil explicar às gerações mais novas, e logo mais qualificadas, em que consistiu realmente aquele imbróglio, mesmo com o auxílio de um livro precioso, delicioso, de João Tomaz e Pedro Adão e Silva, Deixem-nos Sonhar. Caso Saltillo: Portugal e o México 86, Tinta-da-china, 2022.
Em síntese muito sintética, poderá dizer-se que a epopeia de Saltillo começou com um remate atómico de Carlos Manuel na Alemanha, com a parte exterior do pé direito, que lhe valeu o epíteto instantâneo de “o herói de Estugarda” e que nos abriu as portas ao Mundial do México, em instante histórico que, além do mais, provocou um ataque cardíaco ao correspondente do Diário Popular, Fernando Tenreiro, só salvo com vida por estar em terras germânicas.
Para o México, e como é sabido, fomos liderados por José Torres, o “Bom Gigante”, columbófilo nas horas vagas e autor do famoso “deixem-sonhar.” (Torres, ao que parece, gostava de amenizar o ambiente entre a comitiva lusa contando anedotas atrás de anedotas, picantes de preferência). Os problemas, note-se, começaram antes sequer de alcançarmos as Américas: em vez de um voo mais directo Madrid-Cidade do México, optou-se por retroceder até Frankfurt, numa jornada longuíssima que, segundo Vítor Serpa de A Bola, ficou ao dever-se ao facto de um alto dirigente federativo ter uma “relação directa” (sic) com uma funcionária da Cruzeiro, a agência de viagens da FPF que escolheu aquele trajecto. Depois, na escala em Frankfurt, houve temores de que a comida estivesse contaminada pelas poeiras de Chernobyl e, pior do que isso, os “Infantes”, ignorando os mistérios do pay-per-view, puseram-se a ver filmes porno até altas horas da madrugada, com bonitos resultados na hora de pagar a conta. Na longa viagem interatlântica, e como é óbvio, a rapaziada, com o guarda-redes Bento à cabeça, entreteve-se durante horas a mandar piadolas frescas às hospedeiras de bordo e a um infortunado grupo de raparigas alemãs.
Depois, vá-se lá saber como e porquê, uma lusitana sucessão de desastres: Veloso falhou no doping, teve de ser substituído às pressas por Bandeirinha, o qual, imagine-se, foi resgatado em Coimbra, na calada da noite, enquanto ouvia uma serenata na Queima das Fitas, não acreditando que era mesmo para ir jogar ao México (num prodígio de desenrascanço, o fato de Bandeirinha foi feito às pressas, com o moço, coitado, nem sabendo dar o nó da gravata); a Selecção viajou muito cedo, cedo demais, e ficou hospedada numa espelunca, o motel La Torre, que mais tarde iria albergar um grupo paramilitar, sendo palco de torturas e execuções sumárias (diz-se que em redor do La Torre ainda hoje estão sepultados muitos cadáveres); a seguir, Portugal treinou num campo tão inclinado que as bolas deslizavam sozinhas e, para cúmulo dos azares, no longo percurso aéreo até ao México apodreceram três toneladas do fiel amigo, a nossa arma secreta, para desespero de Evaristo Cardoso, do Solar dos Presuntos, o qual, mal refeito dessa catástrofe bacalhoeira, teve de enfrentar uma terrível invasão de baratas, milhares delas, nas cozinhas do motel infecto.
Enquanto isso, e além de uma excessiva proximidade, vulgo balbúrdia, entre jogadores e imprensa, os “Infantes” foram subornando os seguranças do La Torre que, pedrados de haxixe, os deixavam sair para escapadinhas românticas com as nativas, algumas das quais processadas dentro de automóveis estacionados à porta daquele estabelecimento moteleiro, num cortejo em fila indiana que chegava a formar dez, doze, dezoito viaturas a abanar em simultâneo. De resto, o contacto oficial da FIFA, um tal Miguelito Carranza, logo se prontificou a arranjar prostitutas para os jogadores; estes declinaram e Miguelito acabou por burlá-los, ficando com o dinheiro que eles lhe tinham dado para comprar gadgets electrónicos no Texas, do lado de lá da fronteira. Às tantas, foi pedido aos correspondentes que deixassem de noticiar as aventuras amorosas dos nossos “Infantes”, cujas mulheres tinham ficado em Portugal, parece que por falta de verba, um dos pontos que Futre considera mais criticável em toda aquela novela mexicana. O pior, segundo ele, foi no regresso a Lisboa, quando, no aeroporto da Portela, a esposa de um dos membros da comitiva gritou para as outras: “Larguem os vossos maridos. Eles vêm cheios de SIDA! Andaram por lá a foder aquelas mexicanas e estão todos infectados!” Neste domínio, a melhor história foi a do correspondente de uma agência noticiosa que, recém-casado, decidiu interromper a lua-de-mel para ir até ao México, onde conheceu uma rapariga que o fez mandar o casamento às urtigas e desaparecer durante semanas, para desespero dos seus colegas.
Antes da partida, o ministro Deus Pinheiro falara, e cita-se, de “uma fezada que nós temos numa boa representação portuguesa no México”, mas a fezada ministerial não se cumpriu, porquanto acabámos eliminados logo na primeira fase qualificativa, de nada valendo o hino composto por Carlos Paião e cantado por Herman/Esteves, “Bamos lá cambada, todos à molhada que isto é futebol total/
Deixem-se de tretas, força nas canetas que o maior é PORTUGAL.”
Além de um inconcebível amadorismo, houve factores agravantes, nomeadamente o facto de na altura se ter começado a discutir o tema dos “direitos de imagem” dos jogadores ante a explosão do futebol como espectáculo global (e, entre nós, com os primeiros passos da Olivedesportos, sendo também sintomático o aumento vertiginoso, por alturas do Mundial, da venda de gravadores vídeo VHS ou Betamax). Também não ajudou em nada o presidente da Federação, Silva Resende, um ex-seminarista fascista pouco dado ao diálogo que, além de ter levado 50 imagens de Nossa Senhora de Fátima para distribuir no México, pouco saiu da Cidade do México para visitar os jogadores em Saltillo (cidade aliás fundada em 1577 por um açoriano, Alberto Vieira do Canto). O plantel, por sua vez, tinha uma forte representação de atletas da margem Sul (Chalana, Nunes, os irmãos José Luís e Jorge Silva, Sobrinho, Jorge Martins), uns mais avermelhados do que outros, todos assaz dispostos a confrontos reivindicativos e a refregas, laborais, destacando-se, nesse domínio, o “trio do Barreiro”, composto por Carlos Manuel, Bento e Diamantino. Remata Futre: “a solidariedade proveniente do distrito de Setúbal foi fundamental.”
Em face disso – e da memorável conferência de imprensa de Manuel Galriço Bento, ladeado por Ribeiro e Jaime Pacheco–, a Selecção entrou em ebulição, fez greve ou ameaçou fazê-la, perdeu contra a Polónia e, no final, acabou eliminada por Marrocos. No rescaldo cabisbaixo, houve ameaças de agressão ao embaixador Knopfli, Torres demitiu-se, sendo substituído por Rui Seabra, e Carlos Manuel, Bento e Diamantino nunca mais envergariam a camisola das quinas. Premonitoriamente, Carlos Manuel e Fernando Gomes ocupavam o tempo no México lendo o pessoano Livro do Desassossego, que a Ática acabara de publicar em 1.ª edição. Depois, passaram-no à prática, num caso que, como é óbvio, dividiu o país durante meses e chegou ao parlamento, onde se chegou a falar da criação de uma comissão de inquérito, com Manuel Alegre do lado dos jogadores, o CDS a apoiar Silva Resende, e intervenções acaloradas de José Carlos Vasconcelos (PRD), Jorge Lemos (PCP) e Marques Mendes (PSD). Soares apelou à “serenidade” e ao “bom senso”, virtudes que evidentemente faltaram. E o jornalista Neves de Sousa, inconfundível, enalteceu os “homens que ousam beliscar o imobilismo de cartolas opiparamente refastelados em cadeirões de ouro”, verberando, de igual sorte, “a preponderância dogmática dos federativos.”
Quanto a Futre, teve participação algo apagada no Mundial da ola e do lema “Em mundo unido por un balón”, pois Torres preferiu guardá-lo como “arma secreta”. Ainda assim, o garboso montijense preparou-se como devia, reduzindo os muitos cigarros/dia e jurando de si para si que não se iria masturbar, tal como revela nas suas memórias, a páginas 177-178. Noutra obra (El Portugués, Parte II, Dom Quixote, 2012), falou de um “faroeste” e disse “nunca vi nada assim” a propósito do México e de Saltillo, onde logo à chegada a comitiva portuguesa presenciou uma cena de pancadaria nas ruas, quase com mortos e feridos. De caminho, farpas à “mentalidade totalitária” de Silva Resende e mil e uma histórias com as fogosas autóctones. Numa delas, Hélder Martins andou a fugir de um marido ciumento, de facalhão em punho, que o queria matar. Noutra, um jogador envolveu-se com a mulher de um dos donos do La Torre, uma cinquentona avantajada que Futre define como “uma senhora forte.” Quanto a ele, ligou-se a uma mulher-polícia de 25 anos, Laura Venezuela, “um monumento”, que manteve até ao fim do torneio.
Em 23 de Novembro de 1993, ao serviço da Reggiana, Paulo Futre contraiu a lesão mais grave da sua carreira, uma ruptura parcial do tendão rotuliano, maleita nunca vista no mundo da bola e que, no passado, afectara apenas um profissional de esqui. Foi sujeito a três intervenções cirúrgicas, esteve meses sem jogar e, para sermos honestos, nunca recuperou o fulgor e a forma que haviam celebrizado o seu “Futrebol”.
A crer no que nos conta, tem talento para os negócios. Em França, era ainda muito novo, quando ele e os colegas da bola foram no clássico gamanço de roupa para as lojas de Rocheville, disse-lhes que tinham sido apanhados pelas câmaras de vigilância e que tinham de devolver tudo (e ele, na qualidade de capitão da equipa, arrecadou o produto dos furtos, que depois despachou para Portugal). Mais tarde, em Saltillo, comprou por uma ninharia o muito oiro que uma mexicana rica oferecera a um membro da comitiva, seu amante, e que este não queria trazer para Lisboa, com receio da esposa. Também nos negócios da bola, Futre triunfou em grande estilo, mesmo lidando com grandes trutas do ofício (Pinto da Costa, Gil y Gil, Bernard Tapie). E, mais recentemente, teve o engenho e a arte de converter aquela gafe do chinês e dos charters em imagem de marca que ainda mantém.
Ou seja, e em suma, o verdadeiro artista. Que teve o génio nos genes, sem dúvida. Mas que teve também, ou sobretudo, uma enorme e imensa garra, capaz de resistir a tudo, às muitas pressões que sofreu. Por isso aqui o saudamos, desejando-lhe que Deus assim o mantenha, por sempre e para sempre, sempre concentradíssimo.