Patriotismo prospetivo
A celebração dos quinhentos anos do nascimento de Camões permitiu relembrar a complexa personalidade do maior dos nossos poetas e compreender a noção de patriotismo, enquanto conceito prospetivo, longe de qualquer entendimento fechado e ilegítimo sobre a nossa identidade, aberta e plural, segundo uma História antiga muito rica e de uma memória viva “pelo mundo em pedaços repartida”. E recordo a intervenção de Lídia Jorge em Lagos no dia de Portugal, de Camões e das Comunidades Portuguesas, que nos relembra a de Jorge de Sena em 1977, a falar de “Camões profundo, um Camões dramático e dividido, um Camões subversivo e revolucionário, em tudo um homem do nosso tempo” – “com as angústias e as dúvidas do homem moderno que não obedece a nada nem a ninguém senão à sua própria consciência”. Também Camões, lembrou a oradora, “queixava-se da degradação moral, mencionava “o vil interesse e sede imiga / Do dinheiro a que tudo nos obriga”, e evocava, entre os vários aspetos da degradação, o facto de sucederem aos homens da coragem que tinham enfrentado um mar desconhecido, homens novos, venais que só pensavam em fazer cultura”. Que é, afinal, o patriotismo dos nossos maiores senão a consciência serena dos claros e escuros de que a História se faz? E é essa capacidade de ver tudo que Camões nos lega, em lugar de uma suposição idílica onde ninguém verdadeiramente cabe. “Cada um de nós é uma soma. Tem sangue do nativo e do migrante, do europeu e do africano, do branco e do negro e de todas as outras cores humanas. Somos descendentes do escravo e do senhor que os escravizou. Filhos de piratas e do que foi roubado. Mistura daquele que punia até à morte e do misericordioso que lhe limpava as feridas”. Não por acaso o símbolo da nossa pátria é, caso único, um poeta de vida aventurosa. Este é o sinal evidente de que sem ilusões a ligação à terra e às suas gentes se faz com as diferenças, com a glória e os erros e também com o quotidiano e com as provações.
Façamos um exercício prático. Num tempo em que há muita desatenção relativamente aos problemas essenciais, prevalecendo a ignorância, merece leitura atenta a importante reflexão de Cavaco Silva, feita em Toledo sobre os 40 anos da entrada de Portugal e Espanha na hoje União Europeia. Aí o antigo Presidente defende, como necessária, “uma frente europeísta, com convicção, que contrarie os movimentos eurocéticos e populistas em alguns Estados-membros da União”. Daí referir o elenco de prioridades europeias, como a União Bancária, a União dos Mercados de Capitais, a diversificação de fontes de financiamento das empresas, a criação de uma função orçamental comum para a estabilização macroeconómica, a transparência nas contas públicas, o reforço do poder geopolítico, económico e tecnológico, que recupere o atraso relativamente aos EUA e à China, a exigência de investimento em investigação e inovação, designadamente nas áreas da eletrónica, das telecomunicações e farmacêutica, a aposta na União Europeia da Energia, a política da Defesa, com recurso à mutualização da dívida europeia, como ensinam os clássicos, e a reposição da verdade quanto à real situação do comércio externo com os Estados Unidos. Eis a distinção entre a superfície das coisas e o fundo das mesmas. Procurando a verdade, mesmo incómoda, só realçamos o que temos de mais positivo e perene.
Administrador executivo da Fundação Calouste Gulbenkian