Pagar as dívidas

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O tema da dívida tem sido recorrentemente tratado na esfera nacional e europeia. E também eu a este tema me tenho referido em diversas ocasiões, seja sublinhando o seu enorme peso em Portugal (134% do PIB) e o efeito que tem no confisco do direito ao futuro das próximas gerações, seja na necessidade de reduzir esse peso através da redefinição das funções do Estado, seja ainda preconizando que o resultado da redução da despesa e do défice orçamental seja canalizado não apenas para a redução da dívida mas também para a redução da carga fiscal sobre os cidadãos e sobre as empresas.

Mas aquilo que muito poucas vezes se discute - o que não deixa de ser paradoxal num mundo cada vez mais interdependente - é o efeito que o sobre-endividamento dos países em vias de desenvolvimento pode ter na sua incapacidade de combater a pobreza e as alterações climáticas e na própria economia global. Por outro lado, este debate tem estado desligado dos outros processos de endividamento em curso que, simultaneamente, são influenciados e influenciam a sustentabilidade financeira das dívidas soberanas. Refiro-me, em especial, à nossa dívida planetária, traduzida na caminhada inexorável para a mudança climática e na destruição de biodiversidade. Vamos gerando uma dívida pública a partir de despesas orçamentais que são superiores às receitas. Vamos gerando uma dívida climática quando emitimos gases com efeito estufa acima do nível que é compatível com o objetivo de 1,5º C de aumento da temperatura. E vamos gerando uma dívida natural quando a taxa de extinção de biodiversidade é cem a mil vezes superior à verificada nas últimas dezenas de milhões de anos.

A nossa capacidade de pagar a dívida climática e natural depende da sustentabilidade da dívida financeira (para poder realizar os investimentos necessários à descarbonização e à conservação da natureza). E a sustentabilidade orçamental e financeira dos países também depende das "boas contas" no combate às alterações climáticas e na proteção da biodiversidade (caso contrário, a despesa pública é agravada com as consequências dos desastres naturais e das zoonoses).

No contexto pós-covid é ainda mais importante abordar o tema do endividamento numa perspetiva global (além da zona euro) e abrangente - integrando as dimensões financeira, climática e natural.

Em primeiro lugar, porque a pandemia agravou a situação de endividamento nos países em vias de desenvolvimento e isso afeta a economia global. A tendência de endividamento que já se verificava antes da pandemia foi reforçada com esta crise global: o nível médio de dívida nos países em desenvolvimento aumentou, entre 2014 e 2020, de 40% para 70%, e o serviço da dívida disparou, em média, de 6% (das receitas nacionais) para 14%. A Iniciativa de Suspensão do Serviço da Dívida (DSSI) lançada pelo G20 logo no início da crise, em 2020, tendo a vantagem de proporcionar uma almofada de liquidez aos países mais pobres, não deu ainda a resposta que é necessária - perdão e reestruturação da dívida - e que será inevitável face à dimensão do problema.

Em segundo lugar, porque, além da crise financeira, os países em vias de desenvolvimento são também os mais afetados pela crise climática. Estando estes países numa situação de sobre-endividamento financeiro, e tendo de retirar mil milhões da situação de pobreza extrema, qual é realisticamente a possibilidade de - sem ajuda, sem cooperação, sem investimento privado e sem perdão da dívida - desembolsar um bilião de dólares anuais em energia limpa e 600 mil milhões em conservação da natureza?

Num momento em que, em várias capitais mundiais, se discutem os respetivos orçamentos do Estado para 2022, é crucial: olhar para a dívida além da sua dimensão meramente financeira; olhar para o investimento além da sua dimensão pública, dando clara prioridade ao investimento privado e tirando partido de novos instrumentos como os green bonds e blended finance; e olhar para a dívida num contexto global e solidário.

Diretor da Cooperação para o Desenvolvimento da OCDE

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