“Ovos com ‘bacon’” no reino dos “Chicos Espertos”

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No pequeno almoço da transformação digital do Estado, há sempre “ovos com bacon”. No entanto convém saber quem é o “porco” e quem é a “galinha”. A galinha contribui, oferecendo o “ovo” e vai à sua vida. O porco compromete-se a morrer para dar o “bacon”. No reino dos “Chicos Espertos”, contudo, todos querem parecer porcos empenhados, mas no fundo não passam de galinhas vaidosas, cacarejando inovação enquanto põem mais um ovo aqui e ali.

Durante anos, os sistemas de informação do Estado foram sendo cozinhados à pressa, sem receita, tempero ou sequer noção da ementa final. Cada ministério, cada direção-geral, cada departamento criou o seu próprio prato, desconfiando do vizinho como se fosse concorrente de um concurso de chefes de cozinha e não parte do mesmo repasto. O resultado é um buffet desordenado de plataformas incompatíveis, cada uma servida em pratos que não encaixam na mesma máquina de lavar.

Aparecem então os “Chicos Espertos”. Mestres do PowerPoint e do jargão tecnológico, especialistas em vender soluções mágicas, como se a transformação do Estado fosse um truque de ilusionismo e não uma obra de arquitetura e engenharia complexa e paciente. Vendem-se apps, dashboards e interfaces reluzentes como se fossem panaceias, convencendo decisores encantados com o brilho do verniz, mas alheios às fundações que é necessário fazer. No fim, tudo parece novo, porém nada funciona em conjunto.

Estes artistas do curto prazo têm um talento especial, ao conseguir transformar cada problema num palco, para exibir as suas “soluções”. Só que essas soluções raramente são estruturais. São pensadas para o agora, para o dinheiro do PRR, para o contrato que fecha, para a vaidade que se inflama e não para o sistema que deve servir e perdurar.

Enquanto se fala em interoperabilidade, cria-se mais um silo, mais um formulário e mais um bot. Enquanto se clama por eficiência, nasce mais uma plataforma que não comunica. É um paradoxo constante, pois quanto mais se investe, menos se integra.

A cumplicidade entre compradores de vaidades e vendedores de ilusões sustenta este ciclo vicioso. Uns fingem que estão a reformar, outros fingem que estão a inovar. No meio, o cidadão, que só queria renovar um cartão ou marcar uma consulta, tropeça nos escombros digitais de sistemas que não falam uns com os outros, criados por quem só se comprometeu com o brilho do momento.

E quando o caos se instala, a disfunção se torna evidente e o Estado parece refém da sua própria desorganização, surgem os abutres. Os mesmos abutres do costume, cheios de ultraliberalismo, que se aproveitam de cada falha para pregar a privatização total e a entrega da coisa pública ao mercado, bem como os do populismo, que se alimentam da frustração popular para gritar contra “os do sistema” e propor soluções simples para problemas complexos. Ambos pairam sobre os restos do serviço público como aves de rapina, diferentes no discurso, mas iguais na sua fome de cadáveres.

Até quando continuará o Estado a pôr ovos soltos sem nunca conseguir fritar o bacon da verdadeira transformação? Sem visão de conjunto, sem liderança técnica real, sem coragem política para recusar o canto da sereia dos “Chicos Espertos” e sem resistência firme aos abutres do extremismo ideológico, o Estado continuará a empilhar soluções como quem empilha Torres de Babel belas por fora e inúteis por dentro.

É urgente abandonar os ovos soltos e começar finalmente a preparar pequenos almoços completos, com compromissos sérios e visão de conjunto. Modernizar o Estado exige deixar de alimentar galinhas vaidosas e abutres oportunistas, passando finalmente a ter a coragem política suficiente para quebrar este ciclo vicioso e colocar o cidadão no centro das políticas públicas e da transformação digital.

Especialista em governação eletrónica

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